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sábado, 11 de dezembro de 2010

Procissão

Percebo-me pronta para a coroação:

crianças são anjos encharcados de festa

e a rua das pedras alisou as peles negras e brancas

num tapete olírico e único

a santa, ah! a santa

aprecia tapetes e coloridas bandeiras nas janelas

e o mar de olhos a exorta ao êxtase

só a fumaça do incensário enfeia o azul

mas reporta-nos ao divino

e a alma floresce de um jeito manso e bom

nas floradas sobre as quais pisamos

a suprema lição:

perfumar o pé que lhe comprime junto ao chão

casas sorriem incontáveis

num aroma que remete ao almoço no fogão

não há homens nem mulheres

-só devotos de coração alargado

e os hinos acordam as memórias

que marejam os olhos de todas as gentes.

Enfim, cruzamos o pórtico da singela capelinha

e a santa sorri, ornada de preces

Identidade

Tantas vezes, frente ao espelho, a pergunta

quem é?

Muitas numa imagem que nenhuma o é

absoluta

a santa, a puta, a servente

a mãe, a avó, a neta

a mulher que partiu e a definitivamente presente

a poetisa sem rima, a cantora de chuveiro

a alfabetizadora, a enfermeira de plantão permanente

a chefe de cozinha, a que lê à noite sozinha

a plena, a carente, a leoa, a serpente

a gata em teto de zinco quente

odalisca sem véus, irmã de alguém, a indiferente

um exército de guerreiras empunhando lanças

uma onda fresca que avança no homem eleito

um vendaval que derruba as barreiras

e, perdidas as estribeiras, vira tufão

docilidade de gueixa regada ao cheiro de café

mãos postas em oração ornada de altar

torra pão, frita o ovo, põe o jantar

adormece de cansaço no regaço do sofá

quem é?

a que passa, a que permanece,a que perdoa

mas não esquece - não

todos os dias visto estas mulheres

e me avisto em cada uma

que fica depois do meu portão.

sábado, 13 de novembro de 2010

Politicamente correta

Eu
explorando minhas possibilidades
atravessando as paredes
regurgitando falsas verdades
me ocultando
no espelho do banheiro
eu
e minhas anterioridades
presa no albúm de família
ostentando uma aliança polida
arranjando os cabelos
como quem segura arreios
varrida pelas noites ocas
impressa nos outros
de uma forma nada original
eu
e minhas amorosidades
papel de carta com cheiro
incenso de rosa branca
um urso de brinquedo
um quadro inacabado
um diário já sem tranca
eu
múltipla asséptica fervorosa
trincando balas nos dentes
enquanto me disperso
avesso alinhavado no verso
cuspindo
as mesmas decoradas falas.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sentença

Suplico
que as luzes fiquem acesas
que a mesa fique posta
que a tv fique calada
que a toalha, ainda molhada, se esqueça
sobre a cadeira da sala
suplico
que os ruídos de fora
sejam orquestrados
pelos ruídos internos
que as janelas embaçadas
permaneçam cegas
ao tudo ao todo a todos
suplico pelo desgosto
de doer só
uma ciência a arte de só ser
que eu vou aprender
demora
mas vou aprender
suplico
pelo direito de estar
e de ficar por aqui.

Encilhada

Entregue à intempéries
sem a muralha de seu sorriso
oscilo
quando penso nas grandes distâncias
tenho ganância de posse
afã por mais desejo
nunca me houvera antes
submetido à paixão
desço degraus de joelhos
mordo meus próprios dedos
arquejo
cabe em mim agora o infinito
e estou prenha de estrelas
a instabilidade de seus olhos
me afoga e me redime
escrevo cartas que queimo
e vivo mais em meus devaneios
do que
em minha tramatura real
seu cheiro está impresso
em cada de meus gestos
quase sofro esta presença
- um no espaço de dois
me sinto diáfana me sinto megera
e tenho uma fome inusitada de por-de-sol
e madrugadas regadas à vinho e à sono atrasado
Sem escapatória diante de suas mãos
uma ave rendida que arranca as asas
um buraco que insolente traga
minha suposta lucidez
e talvez
mas só talvez
alguma recompensa
por uma entrega
em delinquente rendição.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Acuada

Vocifero aos céus
sou besta sem pasto - agonizo
sintetizo meus sonhos a um amarrado
de fugas e desculpas sem destino
eu não sou um instrumento preciso
minha mão oscila resvala e fere
na abertura das possibilidades
pressuponho escolhas antevejo falhas
a renúncia que acompanha
toda espécie de seleção
as minhas orações voltam pra mim
sou eco de meus desterros pessoais
e a imagem que fica
é um presságio um plágio
do espelho que me mira descrente
ando pela alma dos que me rondam
sem pouso sem pausa
a insatisfação amarga o doce presente
da entrega
da maquiada calma.

Possibilidade

Vira e mexe, mexe e vira me transtorna
esta maresia morna de rotina intermitente
como água insalobra ingerida
insistentemente
como estar na vida e não ser viva?
acaso ocorre aos passantes que o sangue pulsa
e o peito treme e a carne germina
e a hora é urgente e daqui a pouco termina
o espetáculo?
medo de cortina aberta de asa desfraldada de vela apagada
medo de estar presente e ciente
do corpo amado da porta aberta da cilada
medo de ser tudo e perder nada
intransigência com a generosa estada
no universo
inverso ao ditado que determina
que quem tudo quer tudo perde
isso não é sina pra ser observada
boca calada não frutifica idéias
e quem tudo quer nem sempre pode e daí?
sonho acordada as histórias malfadadas
e nem por isso me abstenho dos finais
aliás, que pouco gosto quem não atiça o paladar
diante do desconhecido por medo de onde vai dar.

Plena

Peço permissão aqui
pra deixar de lado as minhas sedas
minhas sutis delicadezas
que fazem de mim boa menina
permitam-me mas vou soltar as crinas
e resfolegar enquanto corro doidamente
pelos beirais
e gargalho doida e santa
em devoção irremediável ao momento
lamento se provoco algum desconforto
aos velhos manuais e se olham torto
grito que quero é mais
minha brusca consciência da verdade
inserida na pele dos viventes
de que uma vida é mais do que suficiente
para se saborear do aqui estar e não mais tarde
estou plena de emoções grávida de êxtase
tomo a forma das monções que varrem os desertos
e arrancam a grossas unhas da terra os rebentos
celebrando em tudo a mesma hora
eu me permito aqui, aqui mesmo e agora
gostar de estar viva e onipresente
em cada gesto meu
imensamente.

Couer

Vasto é este meu coração
rico em contraditórias paisagens fértil de esferas
numa incólume observação de cenas e ensaios
permanentes
exita oscila se esmera
troca de roupa na frente da platéia sem maiores disfunções
cora esmorece desfalece
tem pressa na entrega tem remessa atrasada
este campo tão amplo de memórias destonadas
de canções revisitadas nos momentos sem trégua
nas suas tantas irrefreáveis paixões
poço sem água encharcado à vinho
enebriado expectador diante da mera visão
de um novo promissor amor
folhas de verão cobrindo meu querer
com uma sempre nova proposta de cor
este oceano enganoso que calmo e convidativo se apresenta
é fera submersa violenta na fome de mais
um pouco mais
meu coração não é de paz é de guerra de vida
se abre em ferida e desabrocha em rosa original
Esse meu amado coração
é o marginal de minha alma.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Lavradio.

Desço o Lavradio - acompanham-me todos os fantasmas

carregados vestidos assombreados pelas aléias, cartolas e casacões vergados sob o sol carioca

os casarões jamais despem o orgulho e a soberania

escalam-nos heras, cipós, singelas trepadeiras lhes dão um adorno singular

Ao ver-nos passar, mais se aprumam em sua histórica nobreza

e o perfume de coloniais memórias suplanta os manacás dalgum oculto jardim

Os antiquários ali resistem, bravamente

e os lustres, o mobiliário, as porcelanas e jarras

são irretocáveis

Um túnel do tempo uma viagem vívida de algum presente passado

e o toque de meus saltos sobre as pedras rústicas criam uma musicalidade única

Sentamo-nos por um momento

para que não se perca a magia desta vivência oportuna

de espectros amorosos debruçados nas sacadas empoeiradas e silentes

e meu coração, pleno de afeto, é uma transbordo de saudades de algo que nem sei se vivi

mas que me preenche com tal leveza, com tal familiaridade

que estou em casa. Estou em casa.

Pérfida lucidez

A doida avança pela rua com os cabelos emaranhados

as mãos retorcidas e insones

os olhos gastos

Na presença da doida os pássaros se alvoroçam

crianças troçam maldozamente uma maldade só das crianças

nem os cães a perdoam não a permitem não a respiram

A doida traz o medo do contágio

traz o confronto com o meu outro

Pelos trapos coloridos que lhe recobrem as partes

veem-se caminhos tortuosos e sujos

restos latas rostos esquecidos e confusos

A doida geme

e seu gemido faz doer a alma faz secar lama faz cruzar a esquina

para não cruzar com a doida

A doida

vai arrebatando olhares cheios de pavor

da possibilidade tão comum

da demência.

Ecos

Tolerância.Constância. Envolvimento.

Compromisso, sem permissão para arrependimento

Virtudes de sobra, tempo de falta - descontento

Fidelidade virou palavra fora de moda. Como

o ser humano pode ser tão desatento para o que faz

o firmamento

firmar.

Integridade. Gentileza. Boas maneiras.

A vida alheia é sacra como um altar

Nossa inócua intromissão no momento do outro

é um desgosto.

O meu limite é

a cerca emocional do vizinho uma

desforra no meu próprio espaço

Por que a felicidade alheia

incomoda

Por que eu não tenho tempo só

na minha hora

Compaixão. Enternecimento. Ética.

Gastei muita dialética pra

falar do que é óbvio, do que violenta meu

horizonte

próximo.

Por onde anda (andará) nossa (minha)

humanidade

Valores que me valem só

por perto

pra dentro
Meu coração é um labirinto de inúmeras portas, de muitas enganosas voltas, de surpreendentes armadilhas e fáceis entradas. As saídas são ciladas que fazem voltear no mesmo lugar...Meu coração é uma coisa amante, armada, pensada pra aprisionar.
Num espaço curto, uma vida explode, a alma se estira sobre um céu disforme, um sonho pesado, prensado em forma certa, do tamanho marcado pra se refazer. Uma história seca, uma margem larga, um corpo fechado, marcado pelos astros pra sobreviver...Os astros brincam de destino - desatino de deuses.
O relógio me cobra a partida - retardo o movimento, gesticulando lento e sofrido, gesto medido, arranhando o tempo. A garganta sofre - seca, ardida, agoniza a palavra contida, macilenta. E meu olhar é um jardim aberto sem borboletas...O que eu espero? Uma certa urgência de afago, um rasgo na palavra despedida, um bálsamo na ferida do abandono...

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Imortal

Sou eterna.

Eterna no gesto calculado quando a mão acena uma despedida encenada.

Eterna na obscena mania de desejar, provocar e não entregar nada.

Eterna na lembrança frouxa de quem me teve, de quem eu tive, sem nem saber quem era. De uma eternidade quimera, uma quase mortal desdita de ensaiar a vida e não chegar a documentar a verdade.

Eterna rosa de uma outra primavera, anterior as coisas todas que passaram por mim. Doçura eternizada da tatuagem deixada pelo meu batom carmim, selada com uma mentira, que não procria, mas na hora bem que satisfaz esta eterna vontade que a gente nunca sacia, porque se vicia em eternizar o prazer.

Eterna cristalina cápsula parada dentro do tempo que corrói as coisas todas, sábias e tolas, feias e belas, nossas frágeis alegrias, nossas torturantes mazelas.

Eterna dentro de um intervalo inventado, num momento ensaiado para não terminar jamais.

Eterna devoradora das mentes, das falas, das palavras mais solicitadas pelo meu coração.

Amante eterna sem nenhuma eterna paixão. Entre o espaço e o agora, apenas eternizo-me na hora "h".

Ser eternizada em minha semente,célula pulsante,íntima e no entanto estranha,independente de meu ser originário, mas que me preserva em codificada e genética memória, em meu passeio por aqui, em breve história, somado a outro tanto que me antecedeu.

Porque, o que de eterno subsiste é a triste sentença de que a imortalidade é doença - só a impermanência, a inconsistência, a temporalidade, podem nos fazer, na nossa humana fragilidade, desfrutar as coisas que realmente nos importa eternizar.

Eterna sou. No presente.

Porque eu gosto de pássaros.

O pássaro morto é preto, é grande, é frio.

Não vejo nele sinais de menino, de gato ladino, de alçapão.

Ali, sobre a grama,parece ter sido acomodado por uma invisível mão...

Jamais saberei o que o vitimou. Em minha mente inquieta, apenas posso desfiar supostas possibilidades:

seu olho vidrado, ficou fixado no galho que nunca alcançou

na sua retina reflete-se a luz que, repentina, em meio a um rotineiro voo, apagou

sua asa, forte, experiente, quedou-se,repentinamente silente, e em pleno ar o bater cessou

alguma estranha doença, sem marcar-lhe a aparência, na sua garganta a mávia voz calou

ou só estava cansado de tanto voo travado, de canto mesmo engasgado, das fugas de todo dia,

e a morte se apresentou.

O pássaro aconchega-se num ninho de galhos secos, tramados pela ciência do ventos matinais e das curriolas das águas

Numa promessa de longos pousos ao sol, de sofridas noites de tempestades, numa busca incessante de comida para dar continuidade aos filhotes

o pássaro repousa

E aqui minha singela homenagem a uma, entre tantas existências,

que passa sem registro pelos anais da Humanidade
O homem caminha na terra como quem não mora ilhado.Todo recurso é limitado.Mas sendo fechado em si mesmo, usa tudo descuidado: mata bicho, fere floresta, sangra a nascente do rio, fecha a boca da cachoeira, polui o que era sagrado. E aflito, ao final do dia,grita aos céus,desesperado: "- Por que me abandonou o Senhor?" É, está é difícil pra Deus, coitado!Para o filho oferece fartura, mas ele se faz de vitimado...
Dias me chegam, trazendo em si, um quê de rancorosa saudade. Presa sou de seu enredo, meio sofro, meio ao enlevo, da recordação querida. Se me chega assim, dorida, é porque, na despedida, não se deu toda a verdade. Ficaram beijos renegados, abraços por serem dados, palavras por serem ditas...
Me ensurdece este silêncio brotado dentro em mim.Outro tempo,outro espaço,outra proposta.É preciso calar a alma para se escutar assim:o compassar aveludado do sangue sendo levado aos meus recantos selados,as batidas tão calientes são as brasas incandescentes - meus glóbulos cor de carmim pulsando cárdio músculo,o ar que põe e retira meu início e meu fim.Me sinto tão viva,que toda a hora está morta:vivo só para mim.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Maré alta

As vertigens voltaram - respiração ofegante, suor abundante,
ausência, estranhas imagens
Voos sem pouso, cabeça sem amparo, flores de maio em agosto
Ao observar meu próprio rosto, me traio:
estampado no olhos o desgosto por mim mesma
Antevejo temporais
As vertigens já não me surpreendem mais
apenas se instalam como aves da estação
e eu já não faço mais o antigo esforço
para recuperar o controle esperado
não ensaio mais falas nem comesuras nem me incomodam as vaias
desta sociedade absurda
Sinto os meus ossos minhas carnes meus nervos
sinto-me toda em entorpecido enlevo
quando me solto na torrente destas complicadas redes
de minhas comoções
As vertigens são tentativas de fuga de um tormento pessoal
forçar-se a sair de si mesmo por um tempo buscando amenizar sofrimentos
que não se podem ignorar.
Pago o preço do meu temperamento desassogado,
do meu amor acelerado, da minha fome de gentes e por novos vendavais.
Sou um navio à deriva, amarrado em seu velho cais.

Pela retina

Noite.
Luz escassa, mulher devassa, impaciência
sirene de bombeiro, alguém canta no banheiro, sonolência
A vida que se turva, a espera além da curva, porta trancada
o gato no telhado, o cão abandonado, a calçada esburacada
Barulhos que assustam, pesoas que estudam, bebida descontrolada
um carro de polícia, um vulto na esquina, um baque surdo
Uma mulher apressada, gente na balada, alguém pixando o muro
lua destonada, bêbado na enxurrada, sono absoluto
Espera da madrugada, vontade de não fazer nada, escuro
melindres de vampiro, povoam-na suspiros, almas penadas
Namoro no portão, comida requentada, lojas fechadas
As vezes faz calor, as vezes falta amor, as vezes chove.
Tudo no mesmo lugar.

Conversa íntima

Venerável senhor, Meu Coração, desculpe vir a estas altas horas o incomodar,
mas é o que seu silêncio me deixou preocupada e, como não estava fazendo nada,
pensei vir por aqui e ver como está...
Sabe, sua porta está fechada e fiz eu mesma, uma força danada, pra desemperrar
já nos conhecemos há algum tempo e se por acaso, algum grande ressentimento,
o fez hibernar assim, erguer um muro, calar sua voz,
sinto que esta situação deveria ser partilhada, no mínimo, entre nós
Afinal, sabe que lhe tenho apreço e o seu descaso com tudo eu não mereço,
uma vez que do resultado disso vou participar!
Olhe, a vida é complicada - amor, então! Nem digo nada,
mas o bom disso é se arriscar! O senhor, certamente, não é lá muito diferente
de outros corações que acompanho e, se ocorre algum dano, acredite,
sempre um jeito qualquer se pode dar!
Mas trancar-se assim pra novas oportunidades, não perceber que a idade de ouro o chama,
e não permitir que seu potencial proclame o que pode proporcionar,
é um crime, um vacilo - na gíria mais corriqueira - uma besteira sem par!
Tem tanto coração por aí carente e desocupado, tanto amor pra ser vivido e provado,
o senhor nem pode imaginar! Então, me desculpe a sinceridade,
mas não tem mais idade pra devanear, chorar pelas ilusões, pelas fantasias.
Já desfrutou de muita alegria, é rico e pleno, tem terreno pra plantar
um querer maduro, seguro, sem arrependimentos, um poder, sereno,
de se entregar e viver, sem medo nem culpa, a tal da felicidade.
Dito isso, boa noite, passe bem, não se esqueça de que lhe quero bem
e de que espero
alguma boa novidade.

Parco esboço

Desenho lentamente o contorno do teu rosto:
sempre me vem à mente aquele sorriso
espesso e morno, leite quente
aquela pele amaciada pelo contato permanente
com o vento e o por-do-sol
e estes olhos muito abertos, fixados sempre à frente
irradiando rara luz, faróis sobre um atol
Desenho teu rosto a lápis
porque um esboço segue o outro, incontinente
e não chego a uma conclusão da tua boca, oferecida
como uma rosa que dorme, enternecida, num vaso de cristal
A linha do teu queixo, muito reta,
e tua testa larga, umidecida
por uma fonte estranha e secreta
de onde brota, quase pressinto, a seiva da tua vida
as pálpebras pesadas, de noites prolongadas
que quase adormecem sobre a retina comprimida
Desenho o teu rosto porque não posso ter
o deleite de tocá-lo sem me acontecer
de novamente ser tomada pelo destempero
de abandonar de vez o esboço pelo teu corpo inteiro.

Roleta russa

Você não deveria me deixar partir assim, tão tonta, tão solta no nada,

porque afinal um dia eu dei pousada ao seu coração

me deixar assim, com os olhos embaçados e estas imagens difusas

de retratos instântaneos de nós dois, dentro do carro, embaixo de chuva, na noite calada

me deixar sem referências...até minhas preferências estão associadas

ao que você gosta e aprova

Eu, que fico tão sem sentido quando não me sinto amada

me deixar assim, nesta cama grande demais, neste quarto frio demais, neste vazio

e sabendo de mim como sabe, que me ressinto diante da menor saudade

Eu, que já fui espaço do seu sonho, repouso do seu cansaço, seu festejo

me vejo, de repente, borboleta desalojada da crisálida,

com asas ainda por desvendar

Você não deveria se precipitar - e se você descobre

que a nuvem que encobre o sol se desfez e, num lampejo,

reaviva-se por mim o seu desejo, como é que vai me achar

no meio do redemoinho, nas curvas deste longo caminho,

que se abriu a nos afastar...

Saberá encontrar meu rastro, recordará meu perfume, meu lume

e, se estarei esperando o fim da tormenta, sedenta, ainda, de você

Vai se arriscar

vai me testar

vai brincar, uma vez mais, com a sorte...

Porta de saída

O meu cabelo me incomoda, de encontro ao vidro, me cobrindo o rosto

me incomoda o vidro que me espelha, baça visão de quem eu fui um dia,

me incomoda e me alivia, no entanto, ter esperado mesmo sabendo que viria

aquela resposta seca, aquela choradeira,

aquele medo insano, aquela cadeira

vazia,

dia e noite, num canto.

O meu joelho me incomoda, doendo sem razão, me dificultando o passo,

me incomoda o passo dado com vacilo, andar meio atrapalhado do meu desatino

me incomoda e me alivia, entretanto, sair daqui agora, sabendo o bem que faço

ao deixar um espaço para um outro alguém.

O meu olhar me incomoda, fixado neste ponto da história, congelado na memória

me incomoda não descartar de imediato a coisa, ato por ato,

me incomoda e me alivia, por enquanto, ter deixado a covardia do lado de fora

e assumido, que o melhor que faço,

é mesmo ir embora.

Cilada

Inverto a polaridade - adoro uma novidade - deixo você no ar

desmancho o que havia feito, invento um novo defeito, só pra lhe provocar

não dou tempo ao estio, mudo de novo meu cio, agora sou eu a caçar

Redijo um novo contrato, repenso se fico ou se passo, mexo com seu equilíbrio

me visto quando despida, escondendo, embaixo da sua vista, o segredo pra me domar

no claro, fecho os olhos, no escuro delato as pupilas, só vejo o que desejo

Você gosta de surpresa e comigo, com certeza, nunca sabe como vai acabar

me despeço sem estardalhaço, nunca me prende um abraço, não tem nada que me compre

pra você só apareço quando estou sem endereço pra de novo me mudar

A vida me foi generosa, me presenteou, dadivosa, com um veneno que corrompe

mas se ficar assustado, basta ficar bem calado, deixa que vou lhe guiar

conheço muitos caminhos e não sou de poupar carinhos quando disposta a agradar.
Num recôndido de estrelas, escondi, nos entrelaces de um poema, todas as minhas velhas faces. Depositadas no infinito, banhadas num beijo proscrito, resolvo sepultá-las. Já eu mesma não podia, em plena luz do dia,conviver com tal impasse:um amor já natimorto, merece outro desgosto?! Carpe diem. Que repouse, em face de minha maior alegria: um disfarce.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Tudo cabe na canção

Uma nota só compõe a música de minha vida.
Uma nota bem marcada, bem definida.
Uma vez postada a nota,
empresta sonoridade sofrida ao desdobrar desta pauta
onde se entoa o momento.
Clave diante da porta, barrando do som a saída.
Mexendo muitos compassos, traço um espaço seguido de um valsar quase ensaiado,
num ritmo improvisado pra dar gosto a esta desdita.
Apenas sonho o instrumento - e a minha platéia entretenho.
Mas o ritmo, embora escasso,
não me permite descaso - tomo os parceiros nos braços e reescrevo a canção.
Uma nota só entoo, mas faço estender a emoção até os confins do espaço,
até que no total cansaço me surpreenda sinfonia,
de uma única melodia,
numa eterna composição.
Diante de minha janela, mora outra janela cinza. Por mais que o dia colora, ela não muda de tom. Seu vidro está sempre embaçado, o que faz ver o mundo nublado e as formas sem definição. A janela não abre nem fecha, permite só uma brecha pra que o sol não se atreva. A cortina, desbotada, pende, desanimada, sobre o peitoril sem flores. Quantas janelas na vida. Quantos vidros sem clareza. Quanta oportunidade perdida...
Nem mais, nem tanto menos - sou completa em minha essência. Dotada de alguma demência, porque preciso arriscar. Mergulhada em água fria, escaldada para a confiança desmesurada, uma guerreira guardada no peito que ainda trepida. Mais vestida quando despida, no olhar sustentando a resposta, sou do tipo que aposta e vai c...onferir o ganho. Me arranho, me lanho, apanho - mas volto pra me celebrar!
Verdadeiramente tua, desarmada e desfolhada, uma rosa inofensiva dos espinhos despojada. Verdadeiramente amada - crença tola, exagerada, ilusão ornada de fantasias pueris - que me importa? Se cercada no enlace do teus braços eu me faço plena e inteira e, despida de minha falsidade costumeira, posso ser apenas gozo e luz. Mulher alada, fêmea saciada, caçadora abastada que celebra a derradeira aparição de Vênus.
Devolvo-lhe as cartas,as fotos,as farpas.As escapadas regadas a mentiras infantis. Devolvo-lhe a necessidade de ar,os telefonemas sussurados atrás das portas espessas.Devolvo-lhe o enorme peso de dias sem paixão,de noites insones e bordões cheios de culpa.Devolvo-lhe os lençóis manchados,as canções complicadas,as rosas... secas.Devolvo-lhe a dignidade de não ter de fingir um grande amor.Eu,eu fico bem com a minha dor.
Na escuridão mais densa,ela se desfaz do que pensa e dança, nua.Solta as pernas bailarinas,as mãos ganham vida própria e volteiam no ar, mariposas enfeitiçadas. Os olhos vidrados de lume, seu corpo todo um perfume de desejo exala. E ela entorpecida, pela lua envolvida, desliza, volteia, alada.Lotús desabrochada, do xar...co ressuscitada, deusa dos vagalumes. nesta dança intrigante,tudo silencia ante esta cena inusitada.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Maré alta

As vertigens voltaram - respiração ofegante, suor abundante,
ausência, estranhas imagens
Voos sem pouso, cabeça sem amparo, flores de maio em agosto
Ao observar meu próprio rosto, me traio:
estampado no olhos o desgosto por mim mesma
Antevejo temporais
As vertigens já não me surpreendem mais
apenas se instalam como aves da estação
e eu já não faço mais o antigo esforço
para recuperar o controle esperado
não ensaio mais falas nem comesuras nem me incomodam as vaias
desta sociedade absurda
Sinto os meus ossos minhas carnes meus nervos
sinto-me toda em entorpecido enlevo
quando me solto na torrente destas complicadas redes
de minhas comoções
As vertigens são tentativas de fuga de um tormento pessoal
forçar-se a sair de si mesmo por um tempo buscando amenizar sofrimentos
que não se pode ignorar.
Pago o preço do meu temperamento desassogado,
do meu amor acelerado, da minha fome de gentes e por novos vendavais.
Sou um navio à deriva, amarrado em seu velho cais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Um desejo é uma rosa

Um desejo não é muito mais que um momento em que se para de racionalizar o instinto. É uma brecha no tempo, é um alento se deixar tomar pelo apelo, pelo impulso, pela entrega - forma de rosa indecorosa que entre os seios se aconchega. Peleja de amor.Um desejo não é muito mais que um momento em que se para de racionalizar o instinto. É uma brecha no tempo, é um alento se deixar tomar pelo apelo, pelo impulso, pela entrega - forma de rosa indecorosa que entre os seios se aconchega. Peleja de amor.
Na noite, sou só espectro - impressão de presença que assombra e se retrai.
Respiro baixo, me movo pouco,
como um louco
que num gesto mal pensado, se trai.
Espreito seu sono,
seu sonho cobiço - atiço o fogo que dorme em seu olhar.
Na noite, sou bicho sem dono,
sou falta de sossego,
sou apego
ao que mais não há.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Por testemunha o Divino

O Divino preso à porta observa a mulher parada
o Divino olha a mulher - a mulher olha pra nada
tem pendentes os seus braços
vazios do filho não vindo
e em seus grandes olhos baços
repousam águas de um rio
os cabelos lhe aureulam a face
já um tanto descarnada
são vigílias noite à dentro
são preces na madrugada
e a esperança pende à fio
Suas pernas se estendem
por sobre as estradas vazias
os morros as serras as valas
e no ventre que acaricia
acalanta uma vida passada
A mulher tem corpo morno
onde ainda esbraveja o calor
de uma esperança indolente
de um resquício de seu amor
O Divino olha a mulher
que se lhe ajoelha à frente
mas só a fita constrito
penalizado, silente
O destino dos caminhos
pertence só ao viajor
e voltar para seus ninhos
é de alguns filhos um ardor
Porém a sorte é madrasta
e nem sempre isso se dá
Então à mulher parada
na janela junto à estrada
só cabe mesmo o esperar.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Embriaguez

Gosto de pensar em ti
quando tenho nas mãos vazio um copo
o corpo doendo de fome e apenas tenho por consolo
fazê-lo dormir
Gosto de pensar em ti como quem pensa em nuvens
numa aflita pressa ante ao que se desfaz
e deixa aquela interrogação no olhar
Assim vou pensando em ti como quem não sofre
porque se traio a dor pulgente como aplaco
a iminente inundação?
Por isso é que gosto de pensar em ti
como se tivesse valido a pena sem me convencer muito disso
porque sou péssima perdedora e aviso
só penso em ti porque insisto
em não me deixar abandonar e resisto
ao impetuoso desejo de procurar de novo
um único gosto este toque o teu cheiro
que faz meu copo transbordar.

Malas prontas

Não parta assim, de mãos vazias
leve um pouco de poesia que sua vida agradece
quem sabe floresce alguma nova emoção
neste território escuro da sua alma
Espere, não vá ainda,
leve música: música para que vc possa dançar
enquanto outros apenas andam pela rota como que marcados
assim vc se perde na melodia e reinventa a canção
sempre há chances de algo aí dentro se quebrar e poder se remendar
ao som de um violão, um piano, um violino
Não saia escondido
você não foi bandido - eu lhe dei meu coração
porque eu tinha um pra dar, que bom!
Mas não se acanhe - abocanhe um tanto de consideração e doçura
tenho tanta que não me falta
e você certamente, fatalmente, eu diria
vai precisar aprender a usar
A pressa é inimiga da afeição, da contemplação, da rima.
Não estou aqui pra lutar: vê? Depûs todas as armas
só você se põe em guarda, mas eu entendo - quem tem muito pouco
teme o assaltar
mas, olha, só de assalto se descobre a paixão.
Então...agora vá.
Multiplique o recebido e você descobrirá
que a maior dádiva de viver um grande amor é saber o libertar.
Já que eu não deixo você dormir e você não permite que eu o ame,levante,vamos contar estrelas! Se o sonho é frágil espuma e seu gosto incerto,desfaz esta espera e me espreita no teu peito. Eu quero este cansaço que vc tenta disfarçar;me deixa pelo menos ninar os teus sentidos. Acordado ou adormecido,se dê por vencido e vamos contar estrelas - buscar na nova manhã uma outra história,minha,sua,nossa.
Não há nada que eu não revele, no olhar, no toque, na pele. Transparente, sou tudo, menos indiferente ao me que serve. Não há calor guardado,não há desejo ilhado,não há mistério. Gosto do lótus que a luz desperta e ele se abre,se entrega,se diverte em se revelar sem cobrança ou esperança. Não há nada que eu queira e vc possa me dar.Eu pego.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Eu quero a menina de cara suja - brigadeiro de panela - a menina magrela que ventava casa a fora casa a dentro; menina que de tanto sonho e pensamento, ganhara o direito de participar dos voos passarinho, menina que tinha dedo de colher flor, boca de falar cantiga, ouvido pra ouvir papai noel chegando; menina velha, de olho atento no morto que passa - passou - menina de dentro da foto amarelada na prateleira da tia

Batidas de um coração

Eu não sei quem tanto bate...
bate a porta do meu coração,
com violência tamanha,sem dó ou consideração.
As dobradiças
bambas,
parafusos pelo chão,
descasca-se a tinta sentida,
desfaz-se o portal da ilusão,
batendo-se, incansalvelmente,
porém,
não sem dano aparente,
na face da minha desdita,
troçando da cantiga sofrida de quem fechou-se a penar
Por que a porta arremessada,
com força desmesurada,
com ganas de destruição?
Deixa quieto este quarto pequeno,
deixa um pouco sereno
um guerreiro repousar
que as botas lhe estão gastas
que as suas armas são castas
que doce é deixar-se amar.
Então quem bate esta porta, em vias de destroçá-la?
Descoberto, o ventre exposto
vai o alcança-lo o desgosto
e, mesmo vendo-lhe o rosto
não o poderá poupar.
Mas bate a porta uma duas vezes sem conta a afronta
tento em vão eu mesmo acalmá-lo
embora não tenha reparo
este seu me abandonar.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Eu tenho estas coisas entulhadas no meu peito,e as vezes não sei direito como coube tudo aí, num andaço prolongado, num atalho mal cortado, um labirinto. E me ressinto de minha confusão. Pressinto, por vezes, que não vou conseguir achar, nesta louca pressa, ao esquadrinhar estas ilhas internas, um esboço de alegria, um vulto familiar de poesia, um perdão...Ai, pobre da esperança, jogada em algum canto deste bagunçado coração

quinta-feira, 8 de julho de 2010

De manhã

A manhã entra porta a fora
nem me salda direito e já vai me aquecendo nos seus braços de sol
ou emoldurada de chuva
me lava a alma e a noite dos olhos
Nos cabelos as revoadas das aves matinais
um ensurdecedor som de vida brota de sua boca
e ela se ri de meu molejo meu lerdar
Entre os seus seios, um cheiro de ruas de pó de frutas mesclado a desejo
um irreprimível desejo de imprimir mais um dia em meu contexto existencial.
Sua veste, diáfana
bordada de sonhos a realizar pessoas a conhecer formas a redescobrir
projetos e planejamentos a cumprir
Ela sempre me chega assim trajada para sair
e me arrasta sem permissão ou a preocupação de me questionar
se quero segui-la
mas não posso decididamente ressistir a ela
generosa farta voluptuosa manhã
Apesar das suas promessas que não se cumprirão
das metas que não serão alcançadas
das frustrações
das estradas que não trilharei uma vez mais e
talvez
até de não poder vê-la mais amanhã
me deixo envolver por ela qual a entrega ao amor
entre torpor entre delícia e dor
sempre persiste por ela uma inabalável fé quando me chega
embalando um novo alvorecer!

terça-feira, 6 de julho de 2010

O que não volta...

A pedra atirada
a palavra proferida
a fera desperta
a carta aberta
a cria parida
a maldição cumprida
a saliva trocada
o sonho abortado
o tiro disparado
as águas do rio
o selo rasgado
o pensamento pensado
a raiz cortada
a fruta colhida
a hora passada
a foto batida
o voo impedido
o pranto chorado
o olho vazado
o filho perdido
a asa arrancada
o beijo roubado
a alma violada
o segredo repartido
o desejo saciado
o fio da vida - rompido.

Nostálgica

Do outro lado da rua, o vejo
Entre nós, fluem carros alvoroçados num frênesi no asfalto
Impiedoso, o sinal é totalmente indiferente à minha aflição
minhas mãos estão alertas
minhas pupilas muito abertas reafirmam a visão
de que é ele do outro lado desta rua
Minhas narinas farejam por mim neste outro
e parece que um alarme estridente soou aqui nalgum lugar
pois tudo em mim desperta num brusco surto
um tranco
no estômago e na memória
Vejo o tempo ao lado dele me encarar
e me mede me testa me afronta
por ele passamos correndo contra nós mesmos
como ratos tontos num labirinto
agora o tempo se arrasta entre nós quase rasteja - cobra
E vem o bote:
seu olhar atravessa a rua e bate no meu rosto
me chega como uma lança fazendo música ao cingir o ar
Tudo fica suspenso
Não me atrevo ao espanto tomou-me um espasmo
reconhecer-me-á?
Revelando o antigo sorriso, constato:
de fato, almas gêmeas peregrinam por este lugar.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Caçador e caça

Alivio a tensão.
Relaxo os olhos.
Respiro.
Devagar, os dedos se mexem.
Testo os reflexos.
Domínio.
Mas não me levanto - as pernas me faltam.
Para prosseguir, é preciso querer.
E de tanto querer, adoeço.
Fascínio. Isso, do querer.
Torna os destinos complexos.
Meu próprio coração, e eu, o desconheço
as veias saltam.
Na sua presença, não há escapatória:
estou nua, crua, no avesso.
Suspiro.
Sou uma nau rumo a Abrolhos
o impacto é inevitável - também o naufrágio.
Entre uma transpiração e uma aflição, um único estágio:
martírio.
A paixão é combustível
altamente inflamável!
- implacável no seu devastador consumo.
Engatilhei o desejo: atiro.
Depois de abatida uma presa
sucumbe toda desavença.
Deliro.
É viciante perder o rumo.

Aniversário

Vou rasgar o papel,cheirar fundo dentro da caixa.Vou enrolar a fita no pescoço,como adorno,como coroa de louro:troféu.Assim que abrir o presente,farei diferente:distribuirei seu conteúdo,sem dó ou economia!E será este presente de felicidade tanta,de tanto festejo e celebração,que jamais me despedirei desta certeza-de que minha vida só tem sentido se for repartida!

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Eu vigio os pensamentos/pra não me trair/eu vigio o rumo das monções/levo a lingua calada, coitada/tento não me denunciar/pois que a passarada levanta voo lá fora/enquanto agora/levanto voo por dentro/Não tem alento, o meu querer/então eu calo/o canto/o pranto/e deixo que o momento seja falado por outros/Eu? Estremeço.
De longe,vê-se a pedra.O mar lança-se a ela,sôfrego,gemendo,um todo.Quase surpresa, ela se entrega.Toma-a o mar, cobrindo-a toda.Ainda assim,ao sol,a revela,na sua face mais rude,na sua nuance mais bela!Coroada de cristais de sal e algas vermelhas,sua pele degastada reflete a luz,num breve instante antes que, imersa,recomece a luta sobre a areia.Mas o mar já penetrou os rasgos e ocupou-lhe espaços.Ela,morna,cede.
É de cravo ou de roseira
a madeira
que cobre o telhado da caixa
enfaixada na fita de seda
que sobre a penteadeira
reserva
discreta
a carta primeira do desabrochar do amor?
Lá dentro, sonolenta
dorme a seca pétala de flor
testemunha rubra
daquele que foi
o primeiro ardor
dor
de amor perdido
só tem cheiro de saudade
verdade dobrada no tempo.

Canto da lavadeira

Ouço o canto das marias

batendo, nas pedras frias, suas peças

coloridas ensaboadas desbotadas já desgastadas

enquanto entoam um lamento

que ora é entretenimento ora cansaço

Mulheres de pernas nuas, torneados braços

pele curtida no roçado

Trazem na letra simples um quê me enleva a alma

e aos seus filhinhos acalma

enquanto dormitam ou correm

pelas beiras do ribeirão

Seus fortes braços levantam

água e suor, sabão e vozes

e a tarde vai se perdendo

dentro das alvas cortinas dos lençóis de minhas retinas

da poeira que cede do chão

Não conhecem os tormentos atrozes

daqueles que perderam a paz

As marias vêm cantando

de longe os filhos tocando

com cestos de roupa amarrada sobre as cabeças firmada

trouxa e solidão

Mulheres que todos chamam "Maria!"

e não reclamam da sina de lavadeiras

que a todas reúne e iguala

tornada rotina certeira

de quem é mulher no sertão.

A Casa da Vovó Carlota - escrito para minha avó, em 2000

A CASA DA VOVÓ CARLOTA



Do que eu mais gostava , quando criança,
Era fugir para lá.
E do que tenho na lembrança,
Prá vocês eu vou contar.
Era uma casa bem grande,
Antiga e muito arrumada.
Cheia de vidros, livros, armários,
Brinquedos de épocas passadas.

Pelos corredores, prateleiras
Escondiam fotos, moedas, compoteiras.
No sótão o baú com revistas e pesados discos
Mostravam lindas moças e baladas esquecidas.
Nos quartos e salas o cheiro de limpeza.
Na cozinha sempre aceso o fogão à lenha
Que parecia, noite e dia, estar preparando alguma guloseima...

E dali saíam bolinhos, pastéis e nhoque,
Saía bolo mármore, de laranja, de baunilha
Que a vovó, dentro da bacia, a massa batia
Com seus braços gorduchos e fortes.
Sempre sobrava um suspiro, uma goiabada, um doce de abóbora
Para quem ficava por perto, com cara de pidão.

No quintal a festa era nossa,
Que armávamos todo tipo de travessura:
Corríamos com o cão, trepávamos nas árvores,
Caímos pelo chão, pegávamos as frutas.
Tinha galinheiro, com galinha garnisé,
Que é pequenininha, mas braba também!
Tinha a horta, com couve, ervilha cheirosinha,
Pé de feijão, alface e almeirão.

Tinha atrás da casa o morro,
Que a gente escalava arriscando o pescoço!
E escorregava de bumbum, sujando a calça
E perdendo o direito à sobremesa, depois do almoço...

As novidades nunca tinham fim.
Sempre havia um livro que ainda não se tinha lido,
Uma boneca que fora da tia quando menina,
Uma foto de gente que já se havia ido,
Um bordado que a mãe, há muito , havia feito.
Caixinhas guardavam brincos, pingentes esquecidos,
Santinhos de batizados e festas que tinham acontecido.

De tudo isso, do que eu mais gostava,
Era da vovó Carlota! Nada daquilo a ela se comparava...
Era gorduchona e tinha bochechas bem vermelhas,
Usava avental xadrez e blusa com bolinhas,
Uma saia comprida lhe cobria os joelhos,
O cabelo era preso grande coque que deixava ver, nas orelhas,
Brinquinhos de ouro.
Só usava chinelos, baixos e macios,
E quando gargalhava, balançava a barrigona!

Nos bolsos do avental sempre estavam balas ou bombons,
E nas suas mãos cresciam as frutas, os animais e as crianças.
Quando ralhava, era pra valer.
Ficava “de mal”e tudo, precisava ver!
Quando a gente se machucava, curava com beijinhos milagrosos
Mas passava um mercúrio, por via das dúvidas.
Tinha sempre uma história do seu tempo de criança,
Quando usava longas tranças e vendia leite para ajudar os pais.

Vovó também falava alemão, e a gente nada entendia
Mas gostava de ouvir e ela repetia
Canções e poemas que decorara naquela língua estranha.
Quando ia ao galinheiro nos levava
Ensinando como alimentar as galinhas e pegar pintinhos
Se colhia amoras, era geléia que faria
Se colhia flores, enfeitaria a sala.

No seu colo fofo eu esquecia as horas
Ouvindo sua voz firme, mas macia
E o seu cheiro de alfazema ficou-me na memória.
Cresci eu, minha irmã cresceu
No colo da vovó, a gente já não cabia
Foi quando Papai do Céu tudo percebeu
E resolveu que a chamaria
Porque os anjinhos precisavam do colo da vovó
De suas histórias e risadas
Dos quitutes que fazia
E levou-a para o céu num dia de muita chuva.
Com certeza ela botou ordem lá por cima,
Mas ainda manda beijos cá prá baixo, pois sinto o seu calor...
Sei do quanto eles gostam de tê-la por lá
Porque eu pude crescer graças ao seu imenso amor!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Chega a noite...

No calar de todos os momentos,noite desce,soprada nos ventos,carregando nos braços o silêncio que apraz.Traz a face coberta,mas a vida dos que a veneram desperta ao seu passar.No séquito,estrelas, de mil formas, de mil maneiras,faiscam nas ruelas e vilas,sobre as casa mais antigas,sobre os barracos, brejeiras.E a senhora noite, amorosa,fecha os olhos do dia menino,e beijando-lhe a tez,sorrindo,dá-lhe por leito luar.

Persona

A máscara de hoje é feita de colagens
cacos de espelho, para os reflexos alheios
lantejolas e paetês, para brilho que seduz induz ao erro
retalhos coloridos se sobrepõem: cidades, faces, algodão de fronha, sobras
tudo bem costurado e colado com muitas histórias
A máscara de hoje é fina
sobre a pele se apropria do tom original
moldada perfeitamente, acoplada sem sentir
faz-se quase crente de que não é máscara
Sua natureza não permanente exige convicção
para que promova memórias de sua passagem por este dia
decido ainda quando retiro se for conveniente convincente confortável
ou não
Com ela transito ilesa sou leveza de uma identidade não minha
a máscara, com certeza, me propicia proteção
uma sensação de espiar escondida de coração sustenido
numa única nota - a da encenação.
Só há um cuidado, um receio, um porém:
que não me esqueça embora o deseje
de que o outro tem suas máscaras também.

sábado, 19 de junho de 2010

Minha vida me acordou tão cedo hoje
levou-me para o sol
alimentou-me sem pressa sem pressões
eu ainda dormiria mais mas ela não deixou
minha vida tem necessidade urgente de ser
digo a ela que tem tempo que se acalme
mas ela se afoba ainda mais e mais se enerva
e fervilha em minhas veias e me salta pelas órbitas
e me jorra pela boca e.
Minha vida gosta de ser fotografada filmada registrada
ela deixa mais marcas que um cão pela casa
desenha no meu rosto signos inconfundíveis
rastros de suas perambulações
me mapeia nos tombos e tropeções que vai levando por aí
tento olhar para ela com carinho não acusando ou cobrando
não censurando certas escolhas algumas indecisões
é que minha vida cisma de ser plena de ser inteira de ser entrega
e depois chora
ou gargalha doidamente
Essa minha vida é tão intrigante
tão amante de descobertas segredos feitiços
uma vida tão menina de tantos caprichos umas tantas perdoáveis mentiras
As vezes é tão pesada a vejo meio deformada feia enegrecida
e metamorficamente refeita de repente me espreita
com o olhar mais sedutor mar absoluto céu fecundo
linda clara lume de estrela dona de uma alegria faceira
Minha vida me ensina todo dia a cada instante
que o mundo é um gole largo a ser tomado de uma vez só.
Hoje eu lhe trouxe uma prenda, embrulhei em fina seda, escarlate, cor da paixão. Eu lhe trouxe com cuidado, dentro do peito postado, com sutileza, leveza, em meio a debruns de ilusão. Eu lhe trouxe este presente, pra que nunca você fique ausente, pra que eu não conheça solidão. Ei-lo aqui: todo enfeitado, em luz de luar banhado - tome o meu coração!
Eu sou a santa que enxuga as lágrimas/eu sou a dama dos vastos lençóis/ eu sou a chama que te carboniza a alma/eu sou a água que te aplaca as feridas/sou a condenada/sou a escolhida/sou a abandonada/sou a mais amada/sou a tua porta de chegada a esta vida.
Mulher eleita do barro/na massa que revela o pão/ moldada pelas estrelas/amada em verso e canção/ventre que vela segredo/boca que cala sentenças/força que move muralhas/amor que aplaca as desavenças.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Caminhando...

Caminho. Dou-me a ver ao sol. Ouço carros, gente-passarinho, assobiando. Vento pensamentos, solto-os como bolhas de sabão. As ruas correm sobre meus pés, mas eu caminho. Mãos borboleteiam à minha passagem, sem pousos demorados. E as gentes são reflexos acomodados ao redor. Não me fixo, nada me detém. Meus pés sabem o caminho de volta, então apenas sigo, como o curso de um rio bom.
Flores , festa dos olhos, raio de sol que faz arder no calor. Manhã nova, mesmas cores, me proponho a mais não ser quem saiu pelo portão só pelo andar. Céu varrido, voo cupido entre os casais no ponto da condução. Uma fita sem cabelo rola, em atropelo, pelas veias da calçada. As pedrinhas se encolhem diante de meu passo firme e eu me encolho diante do mundo embaçado.
Não tem rota, não tem rumo, só o passo, que a outro sucede. Como o compasso marcado escondido dentro do meu peito. Batida que me persegue, de que a gente se desapercebe quando em sossego. Não conheço a sala daquela casa, não me lembro daquela moça, não vi aquele menino nascer. Sou incógnita na distância, próxima na substância, etérea sem o saber. Minha primeira lembrança já se foi e eu nem senti, mas sinto saudades de gentes que ainda nem conheci, saudades de coisas minhas de que eu ainda nem me desfiz. Caminho. Basta por agora.
Hoje eu lhe trouxe uma prenda, embrulhei em fina seda, escarlate, cor da paixão. Eu lhe trouxe com cuidado, dentro do peito postado, com sutileza, leveza, em meio a debruns de ilusão. Eu lhe trouxe este presente, pra que nunca você fique ausente, pra que eu não conheça solidão. Ei-lo aqui: todo enfeitado, em luz de luar banhado - tome o meu coração!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Diferente do que aparento, mudo sempre e me esqueço
de avisar aos demais presentes
de que, por vezes, eu me ausento
Inconstância é palavra
que a um grande amor não atrai
pois no medo da mudança
todo encanto se esvai
Até parece verdade que algo é feito pra ficar
pois desde que o mundo é mundo
tudo pratica o não estar...

Para Ludmila e seu pássaro azul

No cinza tingiu a vida
de poeira e só memória
Inventava as histórias que jamais viveria
e comprava tempo pra gastar juventude em devaneios
A janela era vermelha era baça era madeira
o mundo era o detrás da janela
depois da rua além da fronteira dos seus olhos
Eis que veio
azul de céu aberto desperto
um pássaro
lampejo de vida lhe atrevessou a alma
e na sua solidão profunda absorveu-o, por inteiro
contou-lhe as penas adivinhou-lhe o voo cobiçou-lhe a voz
Decidiu: romperia com o mundo lá fora e viveria em seu próprio cativeiro
o sonho do pássaro que a escolhera
mas primeiro é preciso lacrar as janelas e desposar a ilusão
Eis que a ave, pressentido chuvas e quintais
à janela já fechada se lança
mas só alcança o torpor seguido do golpe derradeiro
contra o vidro juntando-se eternamente aos desejos da moça
O chão era vermelho era tinto era lágrima
da donzela que contra o peito
estreitava a tristeza de uma vida inteira.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sem cura.

Eu não durmo mais
prefiro a companhia das horas desalinhadas entre estrelas
Se dormir, sonho
e neste ato redescubro muitas coisas a esquecer
Não adianta sugerir outro pensar: não satisfaz
recordo frases suas e mesmo sem querê-las
me trazem louco desejo, mesmo se não me proponho
a ceder uma vez mais
É água sobre a pedra, é vento de anunciação
é fogo subindo a serra
é paixão.

sábado, 5 de junho de 2010

A minha mão estranha o papel
e meus olhos se recusam a decodificar as letras à minha frente
Parece-me que miro um enigma
acho que minha cabeça cansou de pensar
e fui embora de mim sem eu me dar conta
porque vou a lugares que não quero falar com gente que não desejo
e como sem gosto o que me servem sem se importar
Os pincéis estão duros a tinta se recusa ao toque
minhas telas brancas não me revelam mais nada
a não ser
este meu conhecido mal de ausência
Eu poderia tentar buscar
alguma referência uma lembrança boa uma graça na frase
mas é areia movediça
porque meu medo de lembrar é maior que minha vontade de não esquecer
e porque não sei se ainda quero
de verdade
lutar pra respirar
fazer força pra sair da cama e ir brincar de rotina
Eu fui no voo passarinho
eu fui na janela do ônibus
eu fui no rosto do estranho
pela metade. Só pela metade.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O papel amarelou sobre a escrivaninha
e a caneta observava aquela indagação
sob o tempo o mundo calara
esperando o gesto seguinte que não vinha nunca
a resposta planava sobre todos
mas não nascia de jeito algum
Os olhos perderam a noção das horas
espetados numa curva que se desfazia distante
como se alguém fosse revelar seu semblante
a qualquer momento
Mas as horas deram lugar aos dias
e os dias traziam noites cada vez mais escuras
e aquela curva ficava impressionantemente
mais comprida mais disforme
Então as coisas se acostumaram àquele silêncio
e as árvores e o capim cresceram indiferentes
Só os olhos não tinham paz
boiavam ora tornavam a afundar afogando-se
naquele oceano de espera.

Mosaico

Não pensei que seria para sempre
mas tampouco para tão breve
Já faz muito tempo
que não acredito mais em felicidade gratuita
Nas constatações diárias
em minha agenda a solidão tem hora certa
Não que me tenha surpreendido exatamente
a sua partida
é que a supunha suave
quase de uma leveza adocicada
imposta assim como o sol rasgando nuvens
machuca muito é de difícil sutura
Me ardem os olhos me pesam as mãos
e a respiração é quase uma obrigação
Nasci inteira e me descubro fragmentada
distribuída quase um mosaico
sou o resultado de todas as esperas
as buscas as perguntas
colecionadas em forma de temporariedade
Mas ainda assim
mesmo dentro desse tempo escasso do amor
eu acreditei que não fosse doer tanto
Pra você ver como a gente vive,
vive, vive e descobre
que a um mais a perceber
sobre si mesmo.

domingo, 30 de maio de 2010

Violeiro

Dedos leves aveludados
acariciam as cordas
mas os olhos semicerrados
só querem esquecer as horas
Perdido em suas canções
devaneia o violeiro
ele é o palco de emoções
contidas num mundo inteiro.
Assusta-lhe o jeito forte
que a nota vem e penetra
indo as beiradas de sua alma
deixando-lhe a ferida aberta.
Enquanto as damas suspiram
e os homens o invejam
desfalece sem que o saibam
em braços que o consumiram.
Distante demais a planície
longe demais do seu chão
ele espalha dedos em riste
pelas cordas sua ilusão.
Pra quem ouve soa belo
pra quem dança soa festeiro
mas na sombra desse homem triste
pulsa a dor de um pantaneiro.

sábado, 29 de maio de 2010

Eu escolhi amar de uma maneira abominável:
amo despetalando as flores das horas
em que estou só
Eu escolhi
amar um amor inconfesso
como quem toma um veneno
num cálice de cristal
Amar amiude e rotineiramente
relendo cartas que não enviei
e escrevendo poemas que nunca serão lidos
Amar de forma insana condenável
pelo tribunal de minha própria existência
sem defesa perante esta imensa covardia
Condenei-me a esta estadia
na casa da dúvida
Pago a pena de não ousar para ser feliz
Curvo-me sobre o peso da escolha
e despeço-me da possibilidade
de sabê-lo um dia.

Sobre os telhados

Eu queria falar sobre os telhados
para as gentes de lá
sobre dias em que a aflição comprime o peito
e a gente não grita
Não grita porque se envergonha de sentir
que sucumbe à emoção
não grita porque de tanto sufocar o grito
ficou mudo da própria voz
Sobre os telhados um berro eu daria
que fizesse tremer as paredes dos presídios creches e ambulatórios
e as doenças da alma fugiriam apavoradas
A coragem acordaria e todo mundo teria que encarar
o espelho escondido embaixo da cama
Quando eu bradasse desse jeito
despertaria até a consciência mais pesada
e aí sim teríamos uma grande revoada
de fantasmas e de almas negras
Depois
depois eu desfaleceria
e cairia na grama do vizinho.

Pedinte

Ah! Deixe que eu lhe toque a face
assim
passarei como um vento descuidado sobre seu cabelo
permitindo que uma mecha charmosa e clara
adorne este rosto que eu gosto tanto
Deixe que eu feche seus olhos
posto minhas mãos sobre eles
e ficaremos a adivinhar formas das nuvens no céu de junho
Por um momento só
lhe tomarei emprestado
o ar
e meu hálito terá cheiro de romã
a verdadeira fruta do pecado.
Mas que pecado pode haver no amar assim
tão doridamente que comoveria os anjos
de jeito tão assustado quanto passarinhos do pátio
jeito tão inocente quanto a água que lhe escorre
da cabeça aos pés?
Da cabeça aos pés o que vejo é tão perfeito
é tão pronto
como estou para lhe dar meu sentimento afoito
e já bem cansado de rodar por aí
sozinho
Quero fazer um ninho entre os seus braços
e dormitar
embalado pelo compassar manso e certo do seu coração
Quero esquecer a tia, a rua, as lojas, o mar
até o mar
para então navegar somente nesta ilusão adocicada
em que tudo fica nada comparado ao meu deleite
tão egoista
tão certo
como os cálculos do antigo caderno de aritmética
E talvez eu tenha a chance de voltar a crer
nas coisas que aprendi lá trás na infância
você sabe: amor pra sempre, alma gêmea, romance
mesmo que seja pra acordar me lamentando.
Alguém já disse: uma vida é muito pouco.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Divagações

Tenho rezado pelos meus pensamentos
tentado trazer, à luz da razão, minhas aflições
Os medos quase sempre são tormentos
monstros que a gente cria pelas mais estranhas razões.
Tenho tentado não sufocar neste cimento
que me pula para dentro das órbitas
e a não me acostumar ao lixo acumulado na visão.
É um tanto difícil, admito
não se sentir muito só na multidão
e não se sentir invadida, quase traida
quando todos dizem o que comer, o que usar, como existir.
Bem, eu vou buscando a pedra filosofal dentro dos dias
porque alguém atrás me empurra, a Terra gira, o sol nasce
não importando o que eu faça pra entender
como é que eu entrei nesta fila pra fumaça
pra beber água contaminada, pra morar apartada
de quase tudo que eu vim ao mundo para ser.
Será que a loucura está trancada
em prédios que a razão podem conter?
Ou (ora de rezar!) será que lá dentro jazem
esquecidos amordaçados reprimidos
aqueles que a luz puderam ver?
Ousar pular da roda, saltar no ar, falar com anjos
tudo isso implica em muito risco.
Pode-se dar de cara com mais que o explícito
pode-se ter consciência do mundo nesta hora.
Quem é que se manteria "lúcido" depois disso?

quarta-feira, 26 de maio de 2010

E então vieram as flores,invadindo telhados,ribeiras,vasos abandonados.Vieram onde se acreditava ser estéril,onde a terra rachara e seu ventre aberto,ressequido, esfaimado e quase indecente, se expunha ao céu. Vieram e foram ocupando lugar nos olhos das gentes aparvalhadas. As flores desafiavam os homens, em sua crescente felicidade, seu colorido incomum, sua simplicidade em apenas estar ali, em apenas existir...

domingo, 23 de maio de 2010

Ilusões III

Depois da curva, perdi o gosto de andar. A rua seca, de mato pouco, não me seduzia. Distante demais a próxima estação, nem dava pra sentir o gosto do ferro. Diante de mim, desdobrava-se o mundo, como um papel de bala: cores amassadas, sem o glamour da telenovela. Com esforço, obriguei o corpo a girar, mas a cabeça não obedecia. E enquanto meus pés me arrastavam de volta à casa, minha cabeça teimava em deslumbrar um caminho sem rota...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Ilusões II

Trago dentro de mim
este rio
que ouço noite, dia dia e noite mas desconheço
o trajeto
dias de quedas profundas
noites de plácidos murmúrios
noites de transbordo
dias de estressantes corredeiras
Trago este rio
que me percorre cavernas e labirintos
limpando meus instintos assoreando a memória
cantando um canto antigo
de gentes que não conheço mais
um rio negro um rio claro
um rio sujo um rio limpo
de margens gastas devastadas pelas força de alguns temporais
Um rio que conduz por mim as estranhezas
que me chegam daí de fora
e leva embora os resíduos que coleto
um rio de rostos afogados
em minhas muitas lágrimas
um rio de águas aquecidas
pelos meus muitos afetos
Nas suas águas vejo refletidas
as vitórias que virão
o filho a ser gestado
a rapidez de um futuro e de um passado que se fundem
num só turbilhão
dentro da minha vida
que escoa
como um rio.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Lampião e Maria Bonita

Num dia dentro dos dias
Lampião com sua gente campeava
andava montado nas horas
varria as encruzilhadas
De longe lhe chega atordoado
um cabra a mando da tropa
que com Maria deixara:
-Senhor, se apresse meu chefe
que Maria Bonita agoniza.
Nem bem tomou da mensagem
ele dispara em seguida
Não sentiu o mandacaru
não viu curupira
nem se importou com "macaco"
varou a caatinga sofrida
e logo nas terras apeou
desesperado sofrido olho pulado
nem mesmo o cansaço o abalou
Mas Maria encontra catita
enfeitada de laços perfumada
e lhe abrindo os braços se atira:
-Meu rei eu morria entediada
virava noite virava dia sem teu braço
e me vi rondada de morte e horror!
Por isso mandei lhe buscar
pra me livrar desta dita.
-Senhora, ele diz, enlevado,
sabia que seria emboscado:
é emboscada de amor!
São tantos os fios, de fina trama, são tantos os sons, de timbre único, são tantas as cores, de tantas estampas, são tantas as nuances num coração.
A manhã me pegou de surpresa/ quase um assalto/arremessou raios em meus olhos e o sol se alojou na minha garganta/o vento me provocou, remexendo minha blusa/e uma borboleta desnorteada pelas flores me fez sorrir/quase um evento, esta manhã/tão cheia de azuis e claridades/quase canta a minha vida/incontida/ nesta rua nestes passantes sonâmbulos..."

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Febre

Sou viciada
em saliva quente (ou mesmo morna)
e a culpa é toda sua
que me ofereceu a boca
dadivosa.

Desde então
provei de tantas histórias
celebradas com gosto
de café vinho vodca
Tomei na veia
do que vai no coração dos homens.

Nunca mais deixaria eu
de peregrinar pela língua
virtuosa
falada pelas almas reclusas nas coisas
Nunca mais seria só eu
mas o somatório de todas as salivas
amargas insossas ou amorosas.

Alerta

Silencia, minha alma
eis que vem o amanhecer precedido pelos passarinhos
O arvoredo coloriu de verde a ventania
é preciso despertar crianças velhos detentos
é preciso desabotoar rosas roupas memórias
O sol varre os últimos resquícios de maquiagem da noite
enquanto doura displicentemente bagos de uva teias e peles
O dia entra em todas as coisas e anda por todas as faces.

Silencia, minha alma
ouçamos o repentino chegar das chuvas
aconchegadas entre os fartos seios das grandes nuvens
Vêm trovoando sua marcha pelos céus
prometendo fúrias de raios e tufões
Ouçamos o silêncio das aves ocultas nas ramagens
o descompassar do coração a cada imprevisto trovão
que revela as entranhas do tempo no templo dos olhos
O dia escorre pelas beiradas das horas e dos telhados

Silencia, minha alma, uma vez mais
para a entrada da imperiosa senhora a Noite
com seu séquito de orgulhosas estrelas
seus sussurros e preces
seus mistérios que só seus dedos tecem e depois
esquecem sobre as vidas dos homens
no apagar das velas e das formas
A cálida dama vem dar de comer aos sonhos
Calemo-nos
pois tudo silenciar é preciso
para que se possa ouvir a própria existência.

Clausura (escrito em 2008)

Eu queria a chave
a porta por trás do sonho
o gosto de encontrar-me
sair de um viver morno

Eu queria o voo
a asa partida e santa
gasta de história tanta
descoberta de mais que o suposto

Eu queria mais
e por querer demais
para calar a busca
eu aceitei o oposto

E assim
duma forma tosca e brusca
afoguei a ânsia numa boca costurada
provando a dor da palavra travada
do desejo macerado com renúncia
que quando não mata
frustra

Eu só quis a chave
mas só tive
da porta
a trave.

Rotina

Dia.
Varri a casa
separei a roupa
destranquei a porta
fria
a rua se via
o buraco com água
molhei a testa
vi o que me resta
pela fresta.

Comi sem gosto
mastigando tempo
desfilando horários
escolhi a roupa
tranquei a porta
e saí
meio torta
com os pés no vento.

Noite. Noite é só
pensamento.

Vivências (escrita em 2008)

Foram-se os dias as noites eu
fragmento de espelho reflito
o encantamento que se perdeu
no pulsar do coração aflito

Onde pus meu sonho seu apelo?
muito tempo em tão pouco amor
gasto em esforços pra mantê-lo
(mas quem reporá pétalas na flor?)

Toma-me uma suspeita calma
saudade de mim de nós vivida
(mas sei que disso vive a alma)

Tudo provo. Se desejo peço
quebro regras. Só assim rendida
amarei de novo. Recomeço.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Um beijo pousou, distraído, sobre uma pele esmaecida. Por um instante viu-se um brilho naquela tez. Desavisado, descomprometido, o beijo bateu asas e voou, sem se voltar. E a face, ainda trêmula, quedou-se pensativa:"o que será que o afujentou, desta vez?"

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Cantando

Quando canto
sobe pela garganta uma angústia
que me estrangula a voz mesclada ao encanto
e me faz sentir a dor da música
Quando canto
meus pés rompem com o chão
e minha alma derruba as minhas portas
expondo minhas vísceras
Quando eu canto emito sons guturais
falo de esferas que só eu conheço
e padeço
de uma vontade inexplicável
saio de tudo que me é familiar
e adentro por emoções nunca descritas
Quando eu canto
meu próprio olho me fita
como a um estranho
e misturando riso e pranto
choro de gozo e de piedade
por todo canto que se não cura mata
e se não mata engravida a minha vida de saudade.

Entre a razão e a loucura

A lucidez
fino cristal na borda desta mesa
espelho d'água que
empossada na estrada
espera o passo
Sinfonia pra poucos
linha de seda
teia de aranha tomando chuva
sono de criança
leve pesado
A lucidez varia até de conceito
de época
de ótica
ponta de faca no queixo do artista
dama caprichosa
chama peregrina
A lucidez tem trejeitos
tem prismas
tem ausências imperceptíveis
A lucidez tem preço
tem prazo tem hora
tem validade
e o que é pior
tem pessoas para avalia-la
que sequer sabem o custo de ser lúcido
e acedem a fogueira para os outros queimarem.

Devaneio

Não sei se sou eu
ou são as coisas
mas tudo anda tão estranho ultimamente
já não identifico certas cores
neste novo cenário à minha frente
São fatos tão bizarros
tão repentinos
gente que se vai nem se despede
gente que não me fala não me escreve
e este tique-taque enlouquecido
de um relógio interno
sem sentido
As horas já não são suficientes
para estar com os amigos para a indulgência
de por o corpo ao sol e mente ao nada
e mesmo quando estou me aborrecendo
o tempo me atropela
em louca cavalgada
Eu ia caminhar eu via verde
eu ia sem dosar quanto faltaria
pra cumprir essa agenda de rotina
mas neste instante breve neste segundo
me cai sobre a cabeça o peso atual do mundo.

O bordado

Ponto a ponto
surge o bordado
do emaranhado de fios entrecruzados
se faz o cenário
os olhos olham mas não vêem
a boca pende calada
o ouvido especula o ambiente silente
mas a mente bateu revoada
As mãos têm vida própria ninguém as dirige
no seu bailar compassado entre pano e agulha
e a angustiante brancura do tecido
agride a cor
Que intrincado tramado
este viver
de pontos diversificados
de erro e acerto
de ponta de tesoura
de nós
Vem surgindo o desenho sonhado
aparecendo no ponto buscado
a história de cada um
a sós.

domingo, 16 de maio de 2010

Ilusões I

Houve um tempo
em que não alardeavam o amor
era como se ao gritar
ele alçasse vôo e não pudessem impedí-lo
Houve um dia
em que o amor era só um sussuro, um sopro
de tão frágil natureza
que temiam-lhe a morte a todo instante
Houve um momento
em que ele era tão palpável tão real
que podiam segurá-lo entre os dedos
sentí-lo entre os lábios
aprisioná-lo entre as pernas
E então houve uma vida uma vida inteira
para aprenderem que este senhor faz suas próprias escolhas
sobre o quanto vai durar.

Num lindo dia...

De repente a noite estava ali
e eu não podia não vê-la
não degustá-la
ela estava ali carregada de seu pouco lume
seus perfumes de outras casas
seu cheiro de viagens
por lugares que cobiço ela sabe
A noite nunca me pede licença
adentra meus momentos sem qualquer cerimonial
traz suas notícias divididas
me faz sono me faz sonâmbula
Quando não a quero se vinga
e me assombra com seres de enigmáticos sonhos
Deixa sempre presa a mim
uma palavra a ser dita diante do dia
um remorso pelo descaso com o relógio
uma paisagem encravada entre os seus seios
A noite me grita dentro de um silêncio enervante
tem o displante
de me lembrar que estou só
E então se acerca de mim
me sussura que só a ela eu tenho
que me entregue
que me traia
Mas se esquece ah! e esmorece
quando exibo vaidosa
mapeadas na pele
as carícias do sol.

Águas revoltas

Eu enfrentei mares inominados,
apinhados de grandes naus sem rumo,
enfrentei nuvens grávidas de tempestades urgentes
e correntes que puxam para abruptos paredões
Eu enfrentei mais:
eu confrontei meus medos.
Eu olhei direto no espelho e me reencontrei
com os obstáculos vencidos
com as batalhas perdidas
com as bandeiras deixadas pra trás
com a paz temporária
com a cortina mortalha de meus ideiais
Estive cara-a-cara com o que despi,
face-a-face com as rugas, os vincos, as fugas
frustradas
do correr dos dias
as alegrias maquiadas
o meu comportamento exemplar diante do outro
mas malfadado diante de mim mesma.
Ilesa para o olhar alheio
e surpresa com meu pouco tato
pra lidar com minhas perdas.
Naveguei estes mares e ninguém soube
dos meus mastros partidos
da minha bússola que tresloucava
me lançando pra beirada dos abismos.
Bebi das tempestades e me viciei em raios de sanidade
trovejei projetos
icei sonhos
e me proclamei senhora de minhas travessias
às claras, às escuras.
Eu voltei ao cais só pra dizer
que parto de novo.
No sol, faço como as sábias lagartixas: olhos fechados, respiração solta, esqueço...esqueço o lugar, o redor, a urgência...que urgência? Urge sentir o prazer desta hora, urge sentir este calor que deixa a mente embotada e o corpo latente, urge o deleite da vida no agora...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Oásis

Não preciso ouvir isso
de novo não
eu escolho desistir
de fantoches, dos atalhos, das saídas fáceis
Parei e já faz tempo
de acreditar nos disfarces, nas encenações
habitando voluntariamente onde posso ser atingida
Mascarar a vida é ofício do palhaço
e a minha peça acabou faz temporadas
Não preciso pedir permissão
eu saio e entro das situações que busco
e não tenho refluxos de culpa porque não deixo
meu desejo ser humilhado pelo estigma.
Tenho pena dos desesperados pelo porto
tenha pena dos que claudicam depois das batalhas
dos que desertam de si mesmos
dos que ostentam uma pele imaculada e a face ereta
Mas não lhes dou de beber de meu oásis
a passagem é secreta
e não cabe abrí-la no coração de qualquer homem.

Reflexões

Durante as chuvas respeito as poças
escuto as batidas renitentes e penso em persistência
durante as chuvas
descubro lesmas entre as plantas
e cobertores de fundo de armário
as ruas não são as mesmas
porque os rostos estão ocultos em golas e chapéus
durante as chuvas fujo do mundo
na frente da minha tevê
e percebo que tenho ossos úmidos
as folhas viram barcas em congestionamento no esgoto
as cores agridem os olhos principalmente a teimosia dos verdes
e os passarinhos se viram como podem nos telheiros
As chuvas me trazem saudades de roupa no varal
e do anil nos lençóis quarados por minha avó
me trazem pátios em que quebrei espelhos d'água
sem medo de sete anos de azar
nada afeta a sorte imensa de se estar criança
Nas chuvas o passado alcança o presente
de repente e o encharca
de muitas, muitas recordações.
Tantas coisas me escapam: vôos noturnos, flor que se abre, sol que se esconde, foto na gaveta, a receita da avó, cheiro de filho, fogo no olho. Tantas coisas escorrem por mim e desconheço: cobiça alheia, desejo proibido, folha caída, gota de chuva, praga e benção. Tantas coisas escolho, tantas renuncio, em igual sofreguidão. Este gosto de vida, despercebida, me faz arder o estômago, me apavora... Adormeço? Despertei, por acaso agora, num lapso de tempo repentino e fugaz entre as horas? Do que me lembro, do que esqueço...eu escolho ou só aconteço?

Deslize

Posso não saber onde você anda
e até ignorar seus pensamentos
Posso ficar horas ao relento
esperando ouvir o portão bater
sem você ver
Posso disfarçar o meu ciúme
e morder meus dedos até sangrar
mas sem queixume que você possa escutar
Mas isso não passa de pretexto
porque, dentro do contexto,
conjugo o verbo amar.
Posso me manter na pose
não dar bandeira no olho
mas sobre a pele a carne se retrai
e acredito que exalo o tempo inteiro
um cheiro que me trai.
As vezes acho isso tudo muito duro
acho que não paga o desassossego
o problema é que mergulhei no escuro
deste calabouço de emoções
E agora
posso disfarçar de mil maneiras
posso camuflar a aflição
mas não posso, triste final de história!
querer enganar meu coração.

Pessoa

Fiz um pacto com meus demônios
eles dormem e não devoram
minha luz
eles dormem e não assustam
os meus anjos
Eu os alimento e os considero
Pobre daquele que os teme ou ignora
nega
da natureza humana
sua aurora
seu primitivo instinto
Meus demônios têm suas faces definidas
e conheço-os pelo nome
um a um
É preciso saber de si mais do que se supõe
é preciso sair e voltar muitas vezes
acordar comer e dormir com eles
como quem cria leões
Fiz um pacto com meus demônios
e eles têm um estranho código de honra
não fingem ser o que não são
não mentem sobre sua condição
e por isso tem meu respeito
mas tolo seria
ingênuo até
negar que estão lá
e que são
também são
parte de mim.
Penso que o tempo passa por mim como se não me visse, quase me ignora, mas, a sua passagem me arranha, me marca, me dobra e desdobra, e embora ele não saiba, vai carregando um pouco de mim a cada dia, misturado a tudo o mais.
Sou totalmente água - emoções fluidicas, pensamentos que rolam uns sobre outros, sucessivos como ondas; uma inconstância em mim mesma; persistente nos meus ideais como a água fura a rocha com suavidade. Sempre me disseram que era "filha de povo d'água, na Umbanda, povo das sereias e ondinas. Que sorte a minha! Amo o mar, nada recarrega minhas baterias como ele...Namaste!

Manhãs

O sol queima as folhas com um beijo
e um vento sem rumo rompe as teias todas
cavam a terra criaturas disformes
e é quase um canto o estalar dos galhos mais altos
Toda a paisagem se descobre
retirando a névoa leve da manhã
se um pássaro se atreve ao canto
outro o abafa
num alarido mais forte
Ouço água
mas não vejo fonte
Ouço patas
de um trotar distante
e o barulho do mundo que acorda
é quase uma dor
Uma roda que não para
um movimento que não cessa
uma rotina que não se expressa
mas que vai moendo os dias
movendo a vida
tocando
cidades, bichos e crianças
que passam correndo para a escola.

Eu, inteira

Tenho um vulcão dentro do peito
dormente
dormindo
Ao acordar
ele abalará meus alicerces duramente erguidos
sofregamente mantidos
e rachará meus castelos de sonhos
Provocará o desconforto de enuviar-me as feições
e todos a minha volta
estremecerão
porque o barulho alheio desperta
os demônios internos dos outros.
Este vulcão dentro de mim
cuspirá o conteúdo abafado
calado à força
de minhas emoções tão bem dissimuladas
e acabrunhada
me verei despida
no meio das gentes.
Alguns dirão
que sabiam que lá ele existia
no fundo das coisas todas
camuflado
e que era inevitável que um dia despertasse assim
Outros de mim dirão
que desconheciam esta minha natureza traiçoeira
pois terei me atrevido a ser eu mesma
com entranhas a mostra e bases desfeitas
irrompendo
com meus velhos padrões
derramando
sobre meus próprios pés
as indigestas questões que me incendiavam
arrazando meus cenários perfeitos
desfazendo meu perfil comportado.
E enquanto as chamas tudo queimam, tudo consomem
eu rirei
do espanto, do espasmo, do atrazo
dos que se escondem de si mesmos.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Eu pisarei as flores do jardim com a leveza da alma que amou e se perdeu...aquela leveza de êxtase e assombro, aquela leveza de susto pós sonho, aquela leveza de espuma de mar...

Confissões para mim mesma.

Vento que rasga as entranhas do tempo,
revelando as palavras que foram sussurradas entre amantes,
vento que traz o sabor dos mares e seus naufragados,
vento que empurra para os abismos do mundo os castelos de nuvens,
venta, ó vento, pra fora de mim,
este gosto de poeira de tempo,
este fantasma que me observa, calado,
no espelho.

Travessia

Duras penas para aquele se atreve ao amor,
duras sentenças
guerreiro de mil investidas
de histórias interrompidas
de noites insones
Duras estradas trilhadas na rota do outro
labirintos e afins
rumos trocados
aramados
jogos de azar
Guerreiro sem lua
na briga crua
de se dominar.

Memórias que não tive

Aproxima-se o tempo dos vagalhões
Logo as águas estarão aflitas
as aves tortas no céu
as nuvens grávidas, entumescidas
Chegarão os lamentos de longe
de longe ouvir-se-ão os lobos e os galhos que se partem sob a terra
O tempo dos tempos
suspenso
entre o espaço e a respiração dos homens.

Vida revisitada

Passado o susto
percebo
que há mais marcas no teu rosto
que está mais baço o teu olho
que há mais palavras na tua boca.
Já mais um pouco e redescubro
que ainda há marcas de mim
pelas tuas memórias
boas, ruins, que importa?
Eu permaneci aí
preservada
insistente
em algum lugar.

Pandora

Já não temo os precipícios:
temo esquecer a leveza do vôo;
já não temo o afogamento:
temo antes o naufrágio de meus ideais;
a escuridão? não, não temo
temo a falta de lume nos meus olhos.
No fim, a maioria de nossos medos é um equívoco
- como as vidas de tantas pessoas.
Um sonho sem sono,
um sonambulismo pelas orlas das coisas
sem nunca mergulhar.
Só há que se temer
a metade do viver, do desejar, do querer:
metade de vida é coisa nenhuma.

Poesia de outra era

Na manhã cinzenta
um manto verde escuro profundo queda sobre quase tudo
e o silêncio do mundo me atordoa
Dormirão as aves?E as crianças, dormirão?
Mas os homens atravessam as horas
arrastadas horas
como espectros de si mesmos
como quem cava túneis no tempo
como quem habita cavernas de pensamentos.

Humanidade I

A minha proposta de vida
é virar tudo do avesso
fachadas não me seduzem
vejo tudo do começo
vísceras, sangue, fluidos
quero o tom essencial
a música que não foi escrita
a boca que ainda saliva
o desejo em ponto de bala
a alma
desnuda
vulnerável
sofrida.

Grito

Até quando as árvores sangrarão
até quando os rios enegrecidos
o ar pesado
as aves aquáticas cabisbaixas
o choro das marés? Até quando
as raízes expostas
as propostas indecorosas à vida?
O mato ralo
o dia incerto
o amor a míngua?
Os homens cinzentos
os plúmbeos dias sem contento
as manadas desordenadas
Até quando
o clamor abafado
e viveremos amordaços em nossa própria dor?

Humanidade II

Alma sem cicatrizes
sem poeira das estradas
almas apenas amadas
sem conhecer sofreguidão
sem desatinos, sem memórias agridoces
estas eu desconheço
Quero a carne exposta, a lingua seca
o sonho gasto dos errantes
quero os preciosos instantes
de quem se perdeu no cerco
do final, o recomeço.

Naufragados


Canção dos esquecidos

- murmura o mar

pelas águas revestidos

esbranquiçados de lua

ornados pela saudade

enredilhados em bruma

Por eles oram as aldeias

e as mulheres vêm postar

barquinhos pelas areias

com velas, pra lumiar

as estradas desta vida

que vão para o lado de lá

As sereias se revezam

sobre as ondas quase negras

e as conchas ornam silenciosas

restos de pano e madeira

Na parede o retrato

ficou fingindo sorrir

uma volta prometida

que não há de se cumprir.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Alma gêmea

Te rever
é retomar o gosto
pelachuva no rosto e o caminhar pra se perder
É rejuvenescer
na adolescência absurda
absoluta
do primeiro amor
Te rever é reter
ainda que por momentos
o frescor
o despir da alma
Na presença de insólitas magnólias e impalpáveis alecrins
Sei
que também é materializar
dores de outrora
Recordo passo a passo a hora
da inevitável separação
Mas o que do eterno se recolhe
é a certeza mesma
de que amar é verbo intemporal
incondicional
incompreensível
conjugado com a boca repleta de sol, sons, esperas
(e meso medos, por que não?)
Te rever
é reencontrar-me
e reconhecer
um ser amante
de chilros de passarinho e estrelas bruxuleantes
Um ser de sonho
nesta terra de homens inabaláveis.

Para um menino

Eu te desejo
os dias que juntos passávamos
pelos livros pela grama pelo consolar um ao outro
relembrando o agridoce sabor
de tímidos beijos envoltos no papel de seda colorido
misturados a bombons
A canção que escolhemos e que secretamente zumbíamos
embriagados em nós
Assim eu te desejo
um "amor de índio (...) enquanto a chama arder"
e que a amada possa tudo viver ao teu lado como não pude.
Bonecas de pano e de fita poema de raimundo Corrêa cartas sem rima
cegueira que salva riso que condena rubor que denuncia
falta de siso e muito gozar
das cicatrizes que só o aprender do amor pôde nos dar
Por isto eu te desejo
conhecer cores nas tardes cheiro de espera ânsia de toque
finais de semana curtos demais
e strudewls com passas de menos
Pela incomensurável alegria de suas chegadas
e o atordoamento da sua despedida
é que eu te desejo um gostar igual ao nosso
para que traga de novo aos teus olhos o menino que ái morava
carregado de sol ladrão de flores de estrada alma cheia de querer
O primeiro namorado que toda menina merecia ter.