Total de visualizações de página

domingo, 30 de maio de 2010

Violeiro

Dedos leves aveludados
acariciam as cordas
mas os olhos semicerrados
só querem esquecer as horas
Perdido em suas canções
devaneia o violeiro
ele é o palco de emoções
contidas num mundo inteiro.
Assusta-lhe o jeito forte
que a nota vem e penetra
indo as beiradas de sua alma
deixando-lhe a ferida aberta.
Enquanto as damas suspiram
e os homens o invejam
desfalece sem que o saibam
em braços que o consumiram.
Distante demais a planície
longe demais do seu chão
ele espalha dedos em riste
pelas cordas sua ilusão.
Pra quem ouve soa belo
pra quem dança soa festeiro
mas na sombra desse homem triste
pulsa a dor de um pantaneiro.

sábado, 29 de maio de 2010

Eu escolhi amar de uma maneira abominável:
amo despetalando as flores das horas
em que estou só
Eu escolhi
amar um amor inconfesso
como quem toma um veneno
num cálice de cristal
Amar amiude e rotineiramente
relendo cartas que não enviei
e escrevendo poemas que nunca serão lidos
Amar de forma insana condenável
pelo tribunal de minha própria existência
sem defesa perante esta imensa covardia
Condenei-me a esta estadia
na casa da dúvida
Pago a pena de não ousar para ser feliz
Curvo-me sobre o peso da escolha
e despeço-me da possibilidade
de sabê-lo um dia.

Sobre os telhados

Eu queria falar sobre os telhados
para as gentes de lá
sobre dias em que a aflição comprime o peito
e a gente não grita
Não grita porque se envergonha de sentir
que sucumbe à emoção
não grita porque de tanto sufocar o grito
ficou mudo da própria voz
Sobre os telhados um berro eu daria
que fizesse tremer as paredes dos presídios creches e ambulatórios
e as doenças da alma fugiriam apavoradas
A coragem acordaria e todo mundo teria que encarar
o espelho escondido embaixo da cama
Quando eu bradasse desse jeito
despertaria até a consciência mais pesada
e aí sim teríamos uma grande revoada
de fantasmas e de almas negras
Depois
depois eu desfaleceria
e cairia na grama do vizinho.

Pedinte

Ah! Deixe que eu lhe toque a face
assim
passarei como um vento descuidado sobre seu cabelo
permitindo que uma mecha charmosa e clara
adorne este rosto que eu gosto tanto
Deixe que eu feche seus olhos
posto minhas mãos sobre eles
e ficaremos a adivinhar formas das nuvens no céu de junho
Por um momento só
lhe tomarei emprestado
o ar
e meu hálito terá cheiro de romã
a verdadeira fruta do pecado.
Mas que pecado pode haver no amar assim
tão doridamente que comoveria os anjos
de jeito tão assustado quanto passarinhos do pátio
jeito tão inocente quanto a água que lhe escorre
da cabeça aos pés?
Da cabeça aos pés o que vejo é tão perfeito
é tão pronto
como estou para lhe dar meu sentimento afoito
e já bem cansado de rodar por aí
sozinho
Quero fazer um ninho entre os seus braços
e dormitar
embalado pelo compassar manso e certo do seu coração
Quero esquecer a tia, a rua, as lojas, o mar
até o mar
para então navegar somente nesta ilusão adocicada
em que tudo fica nada comparado ao meu deleite
tão egoista
tão certo
como os cálculos do antigo caderno de aritmética
E talvez eu tenha a chance de voltar a crer
nas coisas que aprendi lá trás na infância
você sabe: amor pra sempre, alma gêmea, romance
mesmo que seja pra acordar me lamentando.
Alguém já disse: uma vida é muito pouco.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Divagações

Tenho rezado pelos meus pensamentos
tentado trazer, à luz da razão, minhas aflições
Os medos quase sempre são tormentos
monstros que a gente cria pelas mais estranhas razões.
Tenho tentado não sufocar neste cimento
que me pula para dentro das órbitas
e a não me acostumar ao lixo acumulado na visão.
É um tanto difícil, admito
não se sentir muito só na multidão
e não se sentir invadida, quase traida
quando todos dizem o que comer, o que usar, como existir.
Bem, eu vou buscando a pedra filosofal dentro dos dias
porque alguém atrás me empurra, a Terra gira, o sol nasce
não importando o que eu faça pra entender
como é que eu entrei nesta fila pra fumaça
pra beber água contaminada, pra morar apartada
de quase tudo que eu vim ao mundo para ser.
Será que a loucura está trancada
em prédios que a razão podem conter?
Ou (ora de rezar!) será que lá dentro jazem
esquecidos amordaçados reprimidos
aqueles que a luz puderam ver?
Ousar pular da roda, saltar no ar, falar com anjos
tudo isso implica em muito risco.
Pode-se dar de cara com mais que o explícito
pode-se ter consciência do mundo nesta hora.
Quem é que se manteria "lúcido" depois disso?

quarta-feira, 26 de maio de 2010

E então vieram as flores,invadindo telhados,ribeiras,vasos abandonados.Vieram onde se acreditava ser estéril,onde a terra rachara e seu ventre aberto,ressequido, esfaimado e quase indecente, se expunha ao céu. Vieram e foram ocupando lugar nos olhos das gentes aparvalhadas. As flores desafiavam os homens, em sua crescente felicidade, seu colorido incomum, sua simplicidade em apenas estar ali, em apenas existir...

domingo, 23 de maio de 2010

Ilusões III

Depois da curva, perdi o gosto de andar. A rua seca, de mato pouco, não me seduzia. Distante demais a próxima estação, nem dava pra sentir o gosto do ferro. Diante de mim, desdobrava-se o mundo, como um papel de bala: cores amassadas, sem o glamour da telenovela. Com esforço, obriguei o corpo a girar, mas a cabeça não obedecia. E enquanto meus pés me arrastavam de volta à casa, minha cabeça teimava em deslumbrar um caminho sem rota...

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Ilusões II

Trago dentro de mim
este rio
que ouço noite, dia dia e noite mas desconheço
o trajeto
dias de quedas profundas
noites de plácidos murmúrios
noites de transbordo
dias de estressantes corredeiras
Trago este rio
que me percorre cavernas e labirintos
limpando meus instintos assoreando a memória
cantando um canto antigo
de gentes que não conheço mais
um rio negro um rio claro
um rio sujo um rio limpo
de margens gastas devastadas pelas força de alguns temporais
Um rio que conduz por mim as estranhezas
que me chegam daí de fora
e leva embora os resíduos que coleto
um rio de rostos afogados
em minhas muitas lágrimas
um rio de águas aquecidas
pelos meus muitos afetos
Nas suas águas vejo refletidas
as vitórias que virão
o filho a ser gestado
a rapidez de um futuro e de um passado que se fundem
num só turbilhão
dentro da minha vida
que escoa
como um rio.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Lampião e Maria Bonita

Num dia dentro dos dias
Lampião com sua gente campeava
andava montado nas horas
varria as encruzilhadas
De longe lhe chega atordoado
um cabra a mando da tropa
que com Maria deixara:
-Senhor, se apresse meu chefe
que Maria Bonita agoniza.
Nem bem tomou da mensagem
ele dispara em seguida
Não sentiu o mandacaru
não viu curupira
nem se importou com "macaco"
varou a caatinga sofrida
e logo nas terras apeou
desesperado sofrido olho pulado
nem mesmo o cansaço o abalou
Mas Maria encontra catita
enfeitada de laços perfumada
e lhe abrindo os braços se atira:
-Meu rei eu morria entediada
virava noite virava dia sem teu braço
e me vi rondada de morte e horror!
Por isso mandei lhe buscar
pra me livrar desta dita.
-Senhora, ele diz, enlevado,
sabia que seria emboscado:
é emboscada de amor!
São tantos os fios, de fina trama, são tantos os sons, de timbre único, são tantas as cores, de tantas estampas, são tantas as nuances num coração.
A manhã me pegou de surpresa/ quase um assalto/arremessou raios em meus olhos e o sol se alojou na minha garganta/o vento me provocou, remexendo minha blusa/e uma borboleta desnorteada pelas flores me fez sorrir/quase um evento, esta manhã/tão cheia de azuis e claridades/quase canta a minha vida/incontida/ nesta rua nestes passantes sonâmbulos..."

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Febre

Sou viciada
em saliva quente (ou mesmo morna)
e a culpa é toda sua
que me ofereceu a boca
dadivosa.

Desde então
provei de tantas histórias
celebradas com gosto
de café vinho vodca
Tomei na veia
do que vai no coração dos homens.

Nunca mais deixaria eu
de peregrinar pela língua
virtuosa
falada pelas almas reclusas nas coisas
Nunca mais seria só eu
mas o somatório de todas as salivas
amargas insossas ou amorosas.

Alerta

Silencia, minha alma
eis que vem o amanhecer precedido pelos passarinhos
O arvoredo coloriu de verde a ventania
é preciso despertar crianças velhos detentos
é preciso desabotoar rosas roupas memórias
O sol varre os últimos resquícios de maquiagem da noite
enquanto doura displicentemente bagos de uva teias e peles
O dia entra em todas as coisas e anda por todas as faces.

Silencia, minha alma
ouçamos o repentino chegar das chuvas
aconchegadas entre os fartos seios das grandes nuvens
Vêm trovoando sua marcha pelos céus
prometendo fúrias de raios e tufões
Ouçamos o silêncio das aves ocultas nas ramagens
o descompassar do coração a cada imprevisto trovão
que revela as entranhas do tempo no templo dos olhos
O dia escorre pelas beiradas das horas e dos telhados

Silencia, minha alma, uma vez mais
para a entrada da imperiosa senhora a Noite
com seu séquito de orgulhosas estrelas
seus sussurros e preces
seus mistérios que só seus dedos tecem e depois
esquecem sobre as vidas dos homens
no apagar das velas e das formas
A cálida dama vem dar de comer aos sonhos
Calemo-nos
pois tudo silenciar é preciso
para que se possa ouvir a própria existência.

Clausura (escrito em 2008)

Eu queria a chave
a porta por trás do sonho
o gosto de encontrar-me
sair de um viver morno

Eu queria o voo
a asa partida e santa
gasta de história tanta
descoberta de mais que o suposto

Eu queria mais
e por querer demais
para calar a busca
eu aceitei o oposto

E assim
duma forma tosca e brusca
afoguei a ânsia numa boca costurada
provando a dor da palavra travada
do desejo macerado com renúncia
que quando não mata
frustra

Eu só quis a chave
mas só tive
da porta
a trave.

Rotina

Dia.
Varri a casa
separei a roupa
destranquei a porta
fria
a rua se via
o buraco com água
molhei a testa
vi o que me resta
pela fresta.

Comi sem gosto
mastigando tempo
desfilando horários
escolhi a roupa
tranquei a porta
e saí
meio torta
com os pés no vento.

Noite. Noite é só
pensamento.

Vivências (escrita em 2008)

Foram-se os dias as noites eu
fragmento de espelho reflito
o encantamento que se perdeu
no pulsar do coração aflito

Onde pus meu sonho seu apelo?
muito tempo em tão pouco amor
gasto em esforços pra mantê-lo
(mas quem reporá pétalas na flor?)

Toma-me uma suspeita calma
saudade de mim de nós vivida
(mas sei que disso vive a alma)

Tudo provo. Se desejo peço
quebro regras. Só assim rendida
amarei de novo. Recomeço.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Um beijo pousou, distraído, sobre uma pele esmaecida. Por um instante viu-se um brilho naquela tez. Desavisado, descomprometido, o beijo bateu asas e voou, sem se voltar. E a face, ainda trêmula, quedou-se pensativa:"o que será que o afujentou, desta vez?"

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Cantando

Quando canto
sobe pela garganta uma angústia
que me estrangula a voz mesclada ao encanto
e me faz sentir a dor da música
Quando canto
meus pés rompem com o chão
e minha alma derruba as minhas portas
expondo minhas vísceras
Quando eu canto emito sons guturais
falo de esferas que só eu conheço
e padeço
de uma vontade inexplicável
saio de tudo que me é familiar
e adentro por emoções nunca descritas
Quando eu canto
meu próprio olho me fita
como a um estranho
e misturando riso e pranto
choro de gozo e de piedade
por todo canto que se não cura mata
e se não mata engravida a minha vida de saudade.

Entre a razão e a loucura

A lucidez
fino cristal na borda desta mesa
espelho d'água que
empossada na estrada
espera o passo
Sinfonia pra poucos
linha de seda
teia de aranha tomando chuva
sono de criança
leve pesado
A lucidez varia até de conceito
de época
de ótica
ponta de faca no queixo do artista
dama caprichosa
chama peregrina
A lucidez tem trejeitos
tem prismas
tem ausências imperceptíveis
A lucidez tem preço
tem prazo tem hora
tem validade
e o que é pior
tem pessoas para avalia-la
que sequer sabem o custo de ser lúcido
e acedem a fogueira para os outros queimarem.

Devaneio

Não sei se sou eu
ou são as coisas
mas tudo anda tão estranho ultimamente
já não identifico certas cores
neste novo cenário à minha frente
São fatos tão bizarros
tão repentinos
gente que se vai nem se despede
gente que não me fala não me escreve
e este tique-taque enlouquecido
de um relógio interno
sem sentido
As horas já não são suficientes
para estar com os amigos para a indulgência
de por o corpo ao sol e mente ao nada
e mesmo quando estou me aborrecendo
o tempo me atropela
em louca cavalgada
Eu ia caminhar eu via verde
eu ia sem dosar quanto faltaria
pra cumprir essa agenda de rotina
mas neste instante breve neste segundo
me cai sobre a cabeça o peso atual do mundo.

O bordado

Ponto a ponto
surge o bordado
do emaranhado de fios entrecruzados
se faz o cenário
os olhos olham mas não vêem
a boca pende calada
o ouvido especula o ambiente silente
mas a mente bateu revoada
As mãos têm vida própria ninguém as dirige
no seu bailar compassado entre pano e agulha
e a angustiante brancura do tecido
agride a cor
Que intrincado tramado
este viver
de pontos diversificados
de erro e acerto
de ponta de tesoura
de nós
Vem surgindo o desenho sonhado
aparecendo no ponto buscado
a história de cada um
a sós.

domingo, 16 de maio de 2010

Ilusões I

Houve um tempo
em que não alardeavam o amor
era como se ao gritar
ele alçasse vôo e não pudessem impedí-lo
Houve um dia
em que o amor era só um sussuro, um sopro
de tão frágil natureza
que temiam-lhe a morte a todo instante
Houve um momento
em que ele era tão palpável tão real
que podiam segurá-lo entre os dedos
sentí-lo entre os lábios
aprisioná-lo entre as pernas
E então houve uma vida uma vida inteira
para aprenderem que este senhor faz suas próprias escolhas
sobre o quanto vai durar.

Num lindo dia...

De repente a noite estava ali
e eu não podia não vê-la
não degustá-la
ela estava ali carregada de seu pouco lume
seus perfumes de outras casas
seu cheiro de viagens
por lugares que cobiço ela sabe
A noite nunca me pede licença
adentra meus momentos sem qualquer cerimonial
traz suas notícias divididas
me faz sono me faz sonâmbula
Quando não a quero se vinga
e me assombra com seres de enigmáticos sonhos
Deixa sempre presa a mim
uma palavra a ser dita diante do dia
um remorso pelo descaso com o relógio
uma paisagem encravada entre os seus seios
A noite me grita dentro de um silêncio enervante
tem o displante
de me lembrar que estou só
E então se acerca de mim
me sussura que só a ela eu tenho
que me entregue
que me traia
Mas se esquece ah! e esmorece
quando exibo vaidosa
mapeadas na pele
as carícias do sol.

Águas revoltas

Eu enfrentei mares inominados,
apinhados de grandes naus sem rumo,
enfrentei nuvens grávidas de tempestades urgentes
e correntes que puxam para abruptos paredões
Eu enfrentei mais:
eu confrontei meus medos.
Eu olhei direto no espelho e me reencontrei
com os obstáculos vencidos
com as batalhas perdidas
com as bandeiras deixadas pra trás
com a paz temporária
com a cortina mortalha de meus ideiais
Estive cara-a-cara com o que despi,
face-a-face com as rugas, os vincos, as fugas
frustradas
do correr dos dias
as alegrias maquiadas
o meu comportamento exemplar diante do outro
mas malfadado diante de mim mesma.
Ilesa para o olhar alheio
e surpresa com meu pouco tato
pra lidar com minhas perdas.
Naveguei estes mares e ninguém soube
dos meus mastros partidos
da minha bússola que tresloucava
me lançando pra beirada dos abismos.
Bebi das tempestades e me viciei em raios de sanidade
trovejei projetos
icei sonhos
e me proclamei senhora de minhas travessias
às claras, às escuras.
Eu voltei ao cais só pra dizer
que parto de novo.
No sol, faço como as sábias lagartixas: olhos fechados, respiração solta, esqueço...esqueço o lugar, o redor, a urgência...que urgência? Urge sentir o prazer desta hora, urge sentir este calor que deixa a mente embotada e o corpo latente, urge o deleite da vida no agora...

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Oásis

Não preciso ouvir isso
de novo não
eu escolho desistir
de fantoches, dos atalhos, das saídas fáceis
Parei e já faz tempo
de acreditar nos disfarces, nas encenações
habitando voluntariamente onde posso ser atingida
Mascarar a vida é ofício do palhaço
e a minha peça acabou faz temporadas
Não preciso pedir permissão
eu saio e entro das situações que busco
e não tenho refluxos de culpa porque não deixo
meu desejo ser humilhado pelo estigma.
Tenho pena dos desesperados pelo porto
tenha pena dos que claudicam depois das batalhas
dos que desertam de si mesmos
dos que ostentam uma pele imaculada e a face ereta
Mas não lhes dou de beber de meu oásis
a passagem é secreta
e não cabe abrí-la no coração de qualquer homem.

Reflexões

Durante as chuvas respeito as poças
escuto as batidas renitentes e penso em persistência
durante as chuvas
descubro lesmas entre as plantas
e cobertores de fundo de armário
as ruas não são as mesmas
porque os rostos estão ocultos em golas e chapéus
durante as chuvas fujo do mundo
na frente da minha tevê
e percebo que tenho ossos úmidos
as folhas viram barcas em congestionamento no esgoto
as cores agridem os olhos principalmente a teimosia dos verdes
e os passarinhos se viram como podem nos telheiros
As chuvas me trazem saudades de roupa no varal
e do anil nos lençóis quarados por minha avó
me trazem pátios em que quebrei espelhos d'água
sem medo de sete anos de azar
nada afeta a sorte imensa de se estar criança
Nas chuvas o passado alcança o presente
de repente e o encharca
de muitas, muitas recordações.
Tantas coisas me escapam: vôos noturnos, flor que se abre, sol que se esconde, foto na gaveta, a receita da avó, cheiro de filho, fogo no olho. Tantas coisas escorrem por mim e desconheço: cobiça alheia, desejo proibido, folha caída, gota de chuva, praga e benção. Tantas coisas escolho, tantas renuncio, em igual sofreguidão. Este gosto de vida, despercebida, me faz arder o estômago, me apavora... Adormeço? Despertei, por acaso agora, num lapso de tempo repentino e fugaz entre as horas? Do que me lembro, do que esqueço...eu escolho ou só aconteço?

Deslize

Posso não saber onde você anda
e até ignorar seus pensamentos
Posso ficar horas ao relento
esperando ouvir o portão bater
sem você ver
Posso disfarçar o meu ciúme
e morder meus dedos até sangrar
mas sem queixume que você possa escutar
Mas isso não passa de pretexto
porque, dentro do contexto,
conjugo o verbo amar.
Posso me manter na pose
não dar bandeira no olho
mas sobre a pele a carne se retrai
e acredito que exalo o tempo inteiro
um cheiro que me trai.
As vezes acho isso tudo muito duro
acho que não paga o desassossego
o problema é que mergulhei no escuro
deste calabouço de emoções
E agora
posso disfarçar de mil maneiras
posso camuflar a aflição
mas não posso, triste final de história!
querer enganar meu coração.

Pessoa

Fiz um pacto com meus demônios
eles dormem e não devoram
minha luz
eles dormem e não assustam
os meus anjos
Eu os alimento e os considero
Pobre daquele que os teme ou ignora
nega
da natureza humana
sua aurora
seu primitivo instinto
Meus demônios têm suas faces definidas
e conheço-os pelo nome
um a um
É preciso saber de si mais do que se supõe
é preciso sair e voltar muitas vezes
acordar comer e dormir com eles
como quem cria leões
Fiz um pacto com meus demônios
e eles têm um estranho código de honra
não fingem ser o que não são
não mentem sobre sua condição
e por isso tem meu respeito
mas tolo seria
ingênuo até
negar que estão lá
e que são
também são
parte de mim.
Penso que o tempo passa por mim como se não me visse, quase me ignora, mas, a sua passagem me arranha, me marca, me dobra e desdobra, e embora ele não saiba, vai carregando um pouco de mim a cada dia, misturado a tudo o mais.
Sou totalmente água - emoções fluidicas, pensamentos que rolam uns sobre outros, sucessivos como ondas; uma inconstância em mim mesma; persistente nos meus ideais como a água fura a rocha com suavidade. Sempre me disseram que era "filha de povo d'água, na Umbanda, povo das sereias e ondinas. Que sorte a minha! Amo o mar, nada recarrega minhas baterias como ele...Namaste!

Manhãs

O sol queima as folhas com um beijo
e um vento sem rumo rompe as teias todas
cavam a terra criaturas disformes
e é quase um canto o estalar dos galhos mais altos
Toda a paisagem se descobre
retirando a névoa leve da manhã
se um pássaro se atreve ao canto
outro o abafa
num alarido mais forte
Ouço água
mas não vejo fonte
Ouço patas
de um trotar distante
e o barulho do mundo que acorda
é quase uma dor
Uma roda que não para
um movimento que não cessa
uma rotina que não se expressa
mas que vai moendo os dias
movendo a vida
tocando
cidades, bichos e crianças
que passam correndo para a escola.

Eu, inteira

Tenho um vulcão dentro do peito
dormente
dormindo
Ao acordar
ele abalará meus alicerces duramente erguidos
sofregamente mantidos
e rachará meus castelos de sonhos
Provocará o desconforto de enuviar-me as feições
e todos a minha volta
estremecerão
porque o barulho alheio desperta
os demônios internos dos outros.
Este vulcão dentro de mim
cuspirá o conteúdo abafado
calado à força
de minhas emoções tão bem dissimuladas
e acabrunhada
me verei despida
no meio das gentes.
Alguns dirão
que sabiam que lá ele existia
no fundo das coisas todas
camuflado
e que era inevitável que um dia despertasse assim
Outros de mim dirão
que desconheciam esta minha natureza traiçoeira
pois terei me atrevido a ser eu mesma
com entranhas a mostra e bases desfeitas
irrompendo
com meus velhos padrões
derramando
sobre meus próprios pés
as indigestas questões que me incendiavam
arrazando meus cenários perfeitos
desfazendo meu perfil comportado.
E enquanto as chamas tudo queimam, tudo consomem
eu rirei
do espanto, do espasmo, do atrazo
dos que se escondem de si mesmos.

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Eu pisarei as flores do jardim com a leveza da alma que amou e se perdeu...aquela leveza de êxtase e assombro, aquela leveza de susto pós sonho, aquela leveza de espuma de mar...

Confissões para mim mesma.

Vento que rasga as entranhas do tempo,
revelando as palavras que foram sussurradas entre amantes,
vento que traz o sabor dos mares e seus naufragados,
vento que empurra para os abismos do mundo os castelos de nuvens,
venta, ó vento, pra fora de mim,
este gosto de poeira de tempo,
este fantasma que me observa, calado,
no espelho.

Travessia

Duras penas para aquele se atreve ao amor,
duras sentenças
guerreiro de mil investidas
de histórias interrompidas
de noites insones
Duras estradas trilhadas na rota do outro
labirintos e afins
rumos trocados
aramados
jogos de azar
Guerreiro sem lua
na briga crua
de se dominar.

Memórias que não tive

Aproxima-se o tempo dos vagalhões
Logo as águas estarão aflitas
as aves tortas no céu
as nuvens grávidas, entumescidas
Chegarão os lamentos de longe
de longe ouvir-se-ão os lobos e os galhos que se partem sob a terra
O tempo dos tempos
suspenso
entre o espaço e a respiração dos homens.

Vida revisitada

Passado o susto
percebo
que há mais marcas no teu rosto
que está mais baço o teu olho
que há mais palavras na tua boca.
Já mais um pouco e redescubro
que ainda há marcas de mim
pelas tuas memórias
boas, ruins, que importa?
Eu permaneci aí
preservada
insistente
em algum lugar.

Pandora

Já não temo os precipícios:
temo esquecer a leveza do vôo;
já não temo o afogamento:
temo antes o naufrágio de meus ideais;
a escuridão? não, não temo
temo a falta de lume nos meus olhos.
No fim, a maioria de nossos medos é um equívoco
- como as vidas de tantas pessoas.
Um sonho sem sono,
um sonambulismo pelas orlas das coisas
sem nunca mergulhar.
Só há que se temer
a metade do viver, do desejar, do querer:
metade de vida é coisa nenhuma.

Poesia de outra era

Na manhã cinzenta
um manto verde escuro profundo queda sobre quase tudo
e o silêncio do mundo me atordoa
Dormirão as aves?E as crianças, dormirão?
Mas os homens atravessam as horas
arrastadas horas
como espectros de si mesmos
como quem cava túneis no tempo
como quem habita cavernas de pensamentos.

Humanidade I

A minha proposta de vida
é virar tudo do avesso
fachadas não me seduzem
vejo tudo do começo
vísceras, sangue, fluidos
quero o tom essencial
a música que não foi escrita
a boca que ainda saliva
o desejo em ponto de bala
a alma
desnuda
vulnerável
sofrida.

Grito

Até quando as árvores sangrarão
até quando os rios enegrecidos
o ar pesado
as aves aquáticas cabisbaixas
o choro das marés? Até quando
as raízes expostas
as propostas indecorosas à vida?
O mato ralo
o dia incerto
o amor a míngua?
Os homens cinzentos
os plúmbeos dias sem contento
as manadas desordenadas
Até quando
o clamor abafado
e viveremos amordaços em nossa própria dor?

Humanidade II

Alma sem cicatrizes
sem poeira das estradas
almas apenas amadas
sem conhecer sofreguidão
sem desatinos, sem memórias agridoces
estas eu desconheço
Quero a carne exposta, a lingua seca
o sonho gasto dos errantes
quero os preciosos instantes
de quem se perdeu no cerco
do final, o recomeço.

Naufragados


Canção dos esquecidos

- murmura o mar

pelas águas revestidos

esbranquiçados de lua

ornados pela saudade

enredilhados em bruma

Por eles oram as aldeias

e as mulheres vêm postar

barquinhos pelas areias

com velas, pra lumiar

as estradas desta vida

que vão para o lado de lá

As sereias se revezam

sobre as ondas quase negras

e as conchas ornam silenciosas

restos de pano e madeira

Na parede o retrato

ficou fingindo sorrir

uma volta prometida

que não há de se cumprir.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Alma gêmea

Te rever
é retomar o gosto
pelachuva no rosto e o caminhar pra se perder
É rejuvenescer
na adolescência absurda
absoluta
do primeiro amor
Te rever é reter
ainda que por momentos
o frescor
o despir da alma
Na presença de insólitas magnólias e impalpáveis alecrins
Sei
que também é materializar
dores de outrora
Recordo passo a passo a hora
da inevitável separação
Mas o que do eterno se recolhe
é a certeza mesma
de que amar é verbo intemporal
incondicional
incompreensível
conjugado com a boca repleta de sol, sons, esperas
(e meso medos, por que não?)
Te rever
é reencontrar-me
e reconhecer
um ser amante
de chilros de passarinho e estrelas bruxuleantes
Um ser de sonho
nesta terra de homens inabaláveis.

Para um menino

Eu te desejo
os dias que juntos passávamos
pelos livros pela grama pelo consolar um ao outro
relembrando o agridoce sabor
de tímidos beijos envoltos no papel de seda colorido
misturados a bombons
A canção que escolhemos e que secretamente zumbíamos
embriagados em nós
Assim eu te desejo
um "amor de índio (...) enquanto a chama arder"
e que a amada possa tudo viver ao teu lado como não pude.
Bonecas de pano e de fita poema de raimundo Corrêa cartas sem rima
cegueira que salva riso que condena rubor que denuncia
falta de siso e muito gozar
das cicatrizes que só o aprender do amor pôde nos dar
Por isto eu te desejo
conhecer cores nas tardes cheiro de espera ânsia de toque
finais de semana curtos demais
e strudewls com passas de menos
Pela incomensurável alegria de suas chegadas
e o atordoamento da sua despedida
é que eu te desejo um gostar igual ao nosso
para que traga de novo aos teus olhos o menino que ái morava
carregado de sol ladrão de flores de estrada alma cheia de querer
O primeiro namorado que toda menina merecia ter.