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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Eu vigio os pensamentos/pra não me trair/eu vigio o rumo das monções/levo a lingua calada, coitada/tento não me denunciar/pois que a passarada levanta voo lá fora/enquanto agora/levanto voo por dentro/Não tem alento, o meu querer/então eu calo/o canto/o pranto/e deixo que o momento seja falado por outros/Eu? Estremeço.
De longe,vê-se a pedra.O mar lança-se a ela,sôfrego,gemendo,um todo.Quase surpresa, ela se entrega.Toma-a o mar, cobrindo-a toda.Ainda assim,ao sol,a revela,na sua face mais rude,na sua nuance mais bela!Coroada de cristais de sal e algas vermelhas,sua pele degastada reflete a luz,num breve instante antes que, imersa,recomece a luta sobre a areia.Mas o mar já penetrou os rasgos e ocupou-lhe espaços.Ela,morna,cede.
É de cravo ou de roseira
a madeira
que cobre o telhado da caixa
enfaixada na fita de seda
que sobre a penteadeira
reserva
discreta
a carta primeira do desabrochar do amor?
Lá dentro, sonolenta
dorme a seca pétala de flor
testemunha rubra
daquele que foi
o primeiro ardor
dor
de amor perdido
só tem cheiro de saudade
verdade dobrada no tempo.

Canto da lavadeira

Ouço o canto das marias

batendo, nas pedras frias, suas peças

coloridas ensaboadas desbotadas já desgastadas

enquanto entoam um lamento

que ora é entretenimento ora cansaço

Mulheres de pernas nuas, torneados braços

pele curtida no roçado

Trazem na letra simples um quê me enleva a alma

e aos seus filhinhos acalma

enquanto dormitam ou correm

pelas beiras do ribeirão

Seus fortes braços levantam

água e suor, sabão e vozes

e a tarde vai se perdendo

dentro das alvas cortinas dos lençóis de minhas retinas

da poeira que cede do chão

Não conhecem os tormentos atrozes

daqueles que perderam a paz

As marias vêm cantando

de longe os filhos tocando

com cestos de roupa amarrada sobre as cabeças firmada

trouxa e solidão

Mulheres que todos chamam "Maria!"

e não reclamam da sina de lavadeiras

que a todas reúne e iguala

tornada rotina certeira

de quem é mulher no sertão.

A Casa da Vovó Carlota - escrito para minha avó, em 2000

A CASA DA VOVÓ CARLOTA



Do que eu mais gostava , quando criança,
Era fugir para lá.
E do que tenho na lembrança,
Prá vocês eu vou contar.
Era uma casa bem grande,
Antiga e muito arrumada.
Cheia de vidros, livros, armários,
Brinquedos de épocas passadas.

Pelos corredores, prateleiras
Escondiam fotos, moedas, compoteiras.
No sótão o baú com revistas e pesados discos
Mostravam lindas moças e baladas esquecidas.
Nos quartos e salas o cheiro de limpeza.
Na cozinha sempre aceso o fogão à lenha
Que parecia, noite e dia, estar preparando alguma guloseima...

E dali saíam bolinhos, pastéis e nhoque,
Saía bolo mármore, de laranja, de baunilha
Que a vovó, dentro da bacia, a massa batia
Com seus braços gorduchos e fortes.
Sempre sobrava um suspiro, uma goiabada, um doce de abóbora
Para quem ficava por perto, com cara de pidão.

No quintal a festa era nossa,
Que armávamos todo tipo de travessura:
Corríamos com o cão, trepávamos nas árvores,
Caímos pelo chão, pegávamos as frutas.
Tinha galinheiro, com galinha garnisé,
Que é pequenininha, mas braba também!
Tinha a horta, com couve, ervilha cheirosinha,
Pé de feijão, alface e almeirão.

Tinha atrás da casa o morro,
Que a gente escalava arriscando o pescoço!
E escorregava de bumbum, sujando a calça
E perdendo o direito à sobremesa, depois do almoço...

As novidades nunca tinham fim.
Sempre havia um livro que ainda não se tinha lido,
Uma boneca que fora da tia quando menina,
Uma foto de gente que já se havia ido,
Um bordado que a mãe, há muito , havia feito.
Caixinhas guardavam brincos, pingentes esquecidos,
Santinhos de batizados e festas que tinham acontecido.

De tudo isso, do que eu mais gostava,
Era da vovó Carlota! Nada daquilo a ela se comparava...
Era gorduchona e tinha bochechas bem vermelhas,
Usava avental xadrez e blusa com bolinhas,
Uma saia comprida lhe cobria os joelhos,
O cabelo era preso grande coque que deixava ver, nas orelhas,
Brinquinhos de ouro.
Só usava chinelos, baixos e macios,
E quando gargalhava, balançava a barrigona!

Nos bolsos do avental sempre estavam balas ou bombons,
E nas suas mãos cresciam as frutas, os animais e as crianças.
Quando ralhava, era pra valer.
Ficava “de mal”e tudo, precisava ver!
Quando a gente se machucava, curava com beijinhos milagrosos
Mas passava um mercúrio, por via das dúvidas.
Tinha sempre uma história do seu tempo de criança,
Quando usava longas tranças e vendia leite para ajudar os pais.

Vovó também falava alemão, e a gente nada entendia
Mas gostava de ouvir e ela repetia
Canções e poemas que decorara naquela língua estranha.
Quando ia ao galinheiro nos levava
Ensinando como alimentar as galinhas e pegar pintinhos
Se colhia amoras, era geléia que faria
Se colhia flores, enfeitaria a sala.

No seu colo fofo eu esquecia as horas
Ouvindo sua voz firme, mas macia
E o seu cheiro de alfazema ficou-me na memória.
Cresci eu, minha irmã cresceu
No colo da vovó, a gente já não cabia
Foi quando Papai do Céu tudo percebeu
E resolveu que a chamaria
Porque os anjinhos precisavam do colo da vovó
De suas histórias e risadas
Dos quitutes que fazia
E levou-a para o céu num dia de muita chuva.
Com certeza ela botou ordem lá por cima,
Mas ainda manda beijos cá prá baixo, pois sinto o seu calor...
Sei do quanto eles gostam de tê-la por lá
Porque eu pude crescer graças ao seu imenso amor!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Chega a noite...

No calar de todos os momentos,noite desce,soprada nos ventos,carregando nos braços o silêncio que apraz.Traz a face coberta,mas a vida dos que a veneram desperta ao seu passar.No séquito,estrelas, de mil formas, de mil maneiras,faiscam nas ruelas e vilas,sobre as casa mais antigas,sobre os barracos, brejeiras.E a senhora noite, amorosa,fecha os olhos do dia menino,e beijando-lhe a tez,sorrindo,dá-lhe por leito luar.

Persona

A máscara de hoje é feita de colagens
cacos de espelho, para os reflexos alheios
lantejolas e paetês, para brilho que seduz induz ao erro
retalhos coloridos se sobrepõem: cidades, faces, algodão de fronha, sobras
tudo bem costurado e colado com muitas histórias
A máscara de hoje é fina
sobre a pele se apropria do tom original
moldada perfeitamente, acoplada sem sentir
faz-se quase crente de que não é máscara
Sua natureza não permanente exige convicção
para que promova memórias de sua passagem por este dia
decido ainda quando retiro se for conveniente convincente confortável
ou não
Com ela transito ilesa sou leveza de uma identidade não minha
a máscara, com certeza, me propicia proteção
uma sensação de espiar escondida de coração sustenido
numa única nota - a da encenação.
Só há um cuidado, um receio, um porém:
que não me esqueça embora o deseje
de que o outro tem suas máscaras também.

sábado, 19 de junho de 2010

Minha vida me acordou tão cedo hoje
levou-me para o sol
alimentou-me sem pressa sem pressões
eu ainda dormiria mais mas ela não deixou
minha vida tem necessidade urgente de ser
digo a ela que tem tempo que se acalme
mas ela se afoba ainda mais e mais se enerva
e fervilha em minhas veias e me salta pelas órbitas
e me jorra pela boca e.
Minha vida gosta de ser fotografada filmada registrada
ela deixa mais marcas que um cão pela casa
desenha no meu rosto signos inconfundíveis
rastros de suas perambulações
me mapeia nos tombos e tropeções que vai levando por aí
tento olhar para ela com carinho não acusando ou cobrando
não censurando certas escolhas algumas indecisões
é que minha vida cisma de ser plena de ser inteira de ser entrega
e depois chora
ou gargalha doidamente
Essa minha vida é tão intrigante
tão amante de descobertas segredos feitiços
uma vida tão menina de tantos caprichos umas tantas perdoáveis mentiras
As vezes é tão pesada a vejo meio deformada feia enegrecida
e metamorficamente refeita de repente me espreita
com o olhar mais sedutor mar absoluto céu fecundo
linda clara lume de estrela dona de uma alegria faceira
Minha vida me ensina todo dia a cada instante
que o mundo é um gole largo a ser tomado de uma vez só.
Hoje eu lhe trouxe uma prenda, embrulhei em fina seda, escarlate, cor da paixão. Eu lhe trouxe com cuidado, dentro do peito postado, com sutileza, leveza, em meio a debruns de ilusão. Eu lhe trouxe este presente, pra que nunca você fique ausente, pra que eu não conheça solidão. Ei-lo aqui: todo enfeitado, em luz de luar banhado - tome o meu coração!
Eu sou a santa que enxuga as lágrimas/eu sou a dama dos vastos lençóis/ eu sou a chama que te carboniza a alma/eu sou a água que te aplaca as feridas/sou a condenada/sou a escolhida/sou a abandonada/sou a mais amada/sou a tua porta de chegada a esta vida.
Mulher eleita do barro/na massa que revela o pão/ moldada pelas estrelas/amada em verso e canção/ventre que vela segredo/boca que cala sentenças/força que move muralhas/amor que aplaca as desavenças.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Caminhando...

Caminho. Dou-me a ver ao sol. Ouço carros, gente-passarinho, assobiando. Vento pensamentos, solto-os como bolhas de sabão. As ruas correm sobre meus pés, mas eu caminho. Mãos borboleteiam à minha passagem, sem pousos demorados. E as gentes são reflexos acomodados ao redor. Não me fixo, nada me detém. Meus pés sabem o caminho de volta, então apenas sigo, como o curso de um rio bom.
Flores , festa dos olhos, raio de sol que faz arder no calor. Manhã nova, mesmas cores, me proponho a mais não ser quem saiu pelo portão só pelo andar. Céu varrido, voo cupido entre os casais no ponto da condução. Uma fita sem cabelo rola, em atropelo, pelas veias da calçada. As pedrinhas se encolhem diante de meu passo firme e eu me encolho diante do mundo embaçado.
Não tem rota, não tem rumo, só o passo, que a outro sucede. Como o compasso marcado escondido dentro do meu peito. Batida que me persegue, de que a gente se desapercebe quando em sossego. Não conheço a sala daquela casa, não me lembro daquela moça, não vi aquele menino nascer. Sou incógnita na distância, próxima na substância, etérea sem o saber. Minha primeira lembrança já se foi e eu nem senti, mas sinto saudades de gentes que ainda nem conheci, saudades de coisas minhas de que eu ainda nem me desfiz. Caminho. Basta por agora.
Hoje eu lhe trouxe uma prenda, embrulhei em fina seda, escarlate, cor da paixão. Eu lhe trouxe com cuidado, dentro do peito postado, com sutileza, leveza, em meio a debruns de ilusão. Eu lhe trouxe este presente, pra que nunca você fique ausente, pra que eu não conheça solidão. Ei-lo aqui: todo enfeitado, em luz de luar banhado - tome o meu coração!

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Diferente do que aparento, mudo sempre e me esqueço
de avisar aos demais presentes
de que, por vezes, eu me ausento
Inconstância é palavra
que a um grande amor não atrai
pois no medo da mudança
todo encanto se esvai
Até parece verdade que algo é feito pra ficar
pois desde que o mundo é mundo
tudo pratica o não estar...

Para Ludmila e seu pássaro azul

No cinza tingiu a vida
de poeira e só memória
Inventava as histórias que jamais viveria
e comprava tempo pra gastar juventude em devaneios
A janela era vermelha era baça era madeira
o mundo era o detrás da janela
depois da rua além da fronteira dos seus olhos
Eis que veio
azul de céu aberto desperto
um pássaro
lampejo de vida lhe atrevessou a alma
e na sua solidão profunda absorveu-o, por inteiro
contou-lhe as penas adivinhou-lhe o voo cobiçou-lhe a voz
Decidiu: romperia com o mundo lá fora e viveria em seu próprio cativeiro
o sonho do pássaro que a escolhera
mas primeiro é preciso lacrar as janelas e desposar a ilusão
Eis que a ave, pressentido chuvas e quintais
à janela já fechada se lança
mas só alcança o torpor seguido do golpe derradeiro
contra o vidro juntando-se eternamente aos desejos da moça
O chão era vermelho era tinto era lágrima
da donzela que contra o peito
estreitava a tristeza de uma vida inteira.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Sem cura.

Eu não durmo mais
prefiro a companhia das horas desalinhadas entre estrelas
Se dormir, sonho
e neste ato redescubro muitas coisas a esquecer
Não adianta sugerir outro pensar: não satisfaz
recordo frases suas e mesmo sem querê-las
me trazem louco desejo, mesmo se não me proponho
a ceder uma vez mais
É água sobre a pedra, é vento de anunciação
é fogo subindo a serra
é paixão.

sábado, 5 de junho de 2010

A minha mão estranha o papel
e meus olhos se recusam a decodificar as letras à minha frente
Parece-me que miro um enigma
acho que minha cabeça cansou de pensar
e fui embora de mim sem eu me dar conta
porque vou a lugares que não quero falar com gente que não desejo
e como sem gosto o que me servem sem se importar
Os pincéis estão duros a tinta se recusa ao toque
minhas telas brancas não me revelam mais nada
a não ser
este meu conhecido mal de ausência
Eu poderia tentar buscar
alguma referência uma lembrança boa uma graça na frase
mas é areia movediça
porque meu medo de lembrar é maior que minha vontade de não esquecer
e porque não sei se ainda quero
de verdade
lutar pra respirar
fazer força pra sair da cama e ir brincar de rotina
Eu fui no voo passarinho
eu fui na janela do ônibus
eu fui no rosto do estranho
pela metade. Só pela metade.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O papel amarelou sobre a escrivaninha
e a caneta observava aquela indagação
sob o tempo o mundo calara
esperando o gesto seguinte que não vinha nunca
a resposta planava sobre todos
mas não nascia de jeito algum
Os olhos perderam a noção das horas
espetados numa curva que se desfazia distante
como se alguém fosse revelar seu semblante
a qualquer momento
Mas as horas deram lugar aos dias
e os dias traziam noites cada vez mais escuras
e aquela curva ficava impressionantemente
mais comprida mais disforme
Então as coisas se acostumaram àquele silêncio
e as árvores e o capim cresceram indiferentes
Só os olhos não tinham paz
boiavam ora tornavam a afundar afogando-se
naquele oceano de espera.

Mosaico

Não pensei que seria para sempre
mas tampouco para tão breve
Já faz muito tempo
que não acredito mais em felicidade gratuita
Nas constatações diárias
em minha agenda a solidão tem hora certa
Não que me tenha surpreendido exatamente
a sua partida
é que a supunha suave
quase de uma leveza adocicada
imposta assim como o sol rasgando nuvens
machuca muito é de difícil sutura
Me ardem os olhos me pesam as mãos
e a respiração é quase uma obrigação
Nasci inteira e me descubro fragmentada
distribuída quase um mosaico
sou o resultado de todas as esperas
as buscas as perguntas
colecionadas em forma de temporariedade
Mas ainda assim
mesmo dentro desse tempo escasso do amor
eu acreditei que não fosse doer tanto
Pra você ver como a gente vive,
vive, vive e descobre
que a um mais a perceber
sobre si mesmo.