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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

desfalque

sopro esta canção aos seus ouvidos enquanto sorrio reclusa em mim
e adivinho, sem fitar seus olhos, que eles marejaram por um instante.
nem preciso segurar suas mãos para sabê-las frias: está tenso e denso
dentro e em volta de nós dois.
a armadilha foi feita de palavras, cruel material que não se desfaz nem no tempo
e o enrodilhamento se deu, entrangulando sem piedade o desavisado coração.
jamais se irá de você esta minha imagem - dentro das horas sou uma espera
doce, amarga, atenta e instável.
(imito a vida, nesta jocosa maneira de existir, velozmente, por aqui).
os pássaros abandonaram você, nesta madrugada sem nuvens e sem sons
e eu estou perto demais para que você identifique esta dor
- é assim que acontecem as despedidas e as chegadas bruscas: a gente nem percebe
e se apaixonou. ou partiu sem começar.
vou lhe deixar meus braços em volta do seu pescoço e este calor
que eu já partilhei com gente demais pelas rotas da minha história.
mas que é sempre calor, isso não se finge ou se produz artificialmente.
no mais, aguarde uma carta, um aviso, uma foto (quem sabe!)
porque já não tenho mais forças para me despedir pessoalmente
- a covardia é uma benesse para momentos como esse
e para gente como eu.

carnevale

não vou facilitar as coisas pra você - de novo não.
vou sair fazendo alarde, vou postar um alarme em cada esquina, vou colorir o muro,
vou dançar a música que só eu ouço, vou fazer um mega esforço pra não chorar
- ao contrário! vou gargalhar bem alto, numa espécie de surto de dor e loucura,
bem ao gosto dos moralistas e hipócritas que se pendurarão nas janelas pra me ver passar.
vestirei púrpura e pintarei a boca que você negou, marcarei de tatuagens mórbidas
um corpo que você navalhou com indiferenças e grandes abandonos.
eu serei a autora de mim mesma, desta vez, sem parcerias ou trocas,
serei a poesia que encarnou e saiu jorrando pelas cantoneiras e sacadas,
incomodando seu sono, perturbando sua rota, desfazendo seus marcos seguros.
serei alada - alma desperta ainda que lesionada, sofrida, violada
pelo descaso com as coisas delicadas e raras.
percebo-me tão translúcida, tão opaca - isso não fica assim:
retomarei, em mim, a gritante orgia das cores e formas, em fantasiosas alegorias
do que, um dia, eu desejei pra mim e larguei, em meio à avenida da minha própria vida.
trarei festa de novo nos meus olhos e serei eu, desmascarada, o estandarte dos sobreviventes.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

caleidoscópio

não me observe tão de perto - eu me acanho.
perto demais e você enxergará as ranhuras da minhas pele
- já não sou tão jovem
as cicatrizes fundas do meu coração de andanças
- já vivi meus amores tortos e doces
a expressão cansada dos meus olhos, um tanto baços
- já ventou muito aqui, dentro destas órbitas.
se afaste um pouco - meu hálito é acre
das coisas que me fizeram engolir à força.
fique de lado, assim, observador indireto
para que meus gestos, por vezes largos, não o tirem do trilho.
tenho mais brilho vista a uma certa lonjura
- como as estrelas, que mesmo mortas, luzem para os desavisados.
além disso, meu caro, a minha palavra, a esta distância, corta.

ato de fé

o amor é minha tenda. meu refúgio no meio da tormenta.
onde se apascenta minha alma. onde se calam meus anseios. onde durmo.
só onde repousa o amor eu durmo. a pulsação se normaliza e possibilita sonhos.
por isso fiz do amor o meu abrigo, o meu celeiro, a minha despensa. afinal, além de abrigar,
me alimenta.
sei que por vezes eu o traio - confundo-o com outros sentimentos menores
e pulo do precipício. neste momento, o amor sofre comigo e até agonizamos.
mas, imortais que somos, nos curamos entre nós. e assim seguimos,
peregrinos destas paragens, as vezes, tão inóspitas. mas temos um ao outro.
e isso nos basta.

no que se crê?

o que há de mais duro numa verdade é que ela faz,
de tudo o mais, uma mentira.
e a verdade que se cultivou, acalentando, por tanto tempo,
descobrimos ser menos verdade que aquela que agora obtivemos,
pela revelação de uma outra pessoa.
e enquanto a verdade dela, soberana, irradia, a nossa, coitada,
débil definha, pois meia verdade, como meia vida, é verdade nenhuma.
a verdade do outro nem sempre é a minha e isso não faz de cada uma
uma verdade menor, de menos valia. mas a verdade que se sobrepuja
a uma história mal contada, a uma ponta de fim de linha, essa sim!
não pode ser a verdade de ninguém. nem deve.
a verdade, como tudo o mais, nos serve - não é pra ser servida.
ela deve ser libertadora, enriquecedora, amiga.
se uma verdade fere, fere porque alguém
inventou uma destrutiva mentira. a verdade está inocente
neste palácio de ilusões coloridas de falsos tons.
mas nem sempre ela é a convidada mais bem vinda.
somos assim, nós, vagamente claros, vagamente certos,
vagamente verdadeiros, mesmo frente aos nossos espelhos.

identificaçào

neste sem fronteiras do meu coração, perco nós dois
numa emoção que por vezes não é minha - é de outra banda da alma.
são graves espaços, de paisagens por vezes amenas, por vezes inóspitas:
cabem em nós a doçura das águas e os cálidos espinhos das rosas.
tão diferentes aos nossos olhos perfilam-se as gentes, os bosques, os desertos
e a cobertura das estrelas acolhe seus desejos de conquista e meus anseios de mulher.
seu perfil me enobrece a afetividade que tenho por meninos e sua altivez
e, por minha vez, ofereço a você um colo manso de mãe.
por certo, nos encontramos e desencontramos, lado à lado, frente à frente,
nestes campos vastos da existência, ora aliados, ora confrontantes,
para afinal, amantes, sublimarmos nossa aliança.
a dança da vida é contínua, é lasciva, é contagiante.
adiante, seguimos. nem sempre em paz, nem sempre em guerra.

depois dos temporais

era para eu esperar...não era?
a dança dos meses, a sucessão das horas, a passagem das nuvens,
a lucidez dos apaixonados, o desfile dos blocos,o crescimento das crianças, a volta da noite,
a luz da rua acender e apagar, acender e apagar.
era para eu acreditar...não era?
no fogo dos olhos, no gosto da fruta, na maturidade dos homens,
na paz, na força dos braços, no apoio dos amigos, no silêncio.
que deveria orar e orar e orar.
era para eu observar...não era?
o desabrochar das flores, a expressão do rosto dos perdidos, o encantamento
de mares, de céus, de barrigas de ventre cheio,
os ninhos, os nichos, os sonhos alheios e aleatórios.
e você...depois de tudo o mais, não veio.

lápide

aqui jaz o meu coração - um sem nome de atos heróicos cometeu.
traz em sua face inúmeras cicatrizes honradas;
cravado em seu seio uma adaga, entre outras farpas e afins,
e ainda assim suportou bem as intempéries.
aqui, agora, buscará o repouso que lhe foi negado em vida - e disso participei.
estendido num espaço tão menor do que lhe faria juz, não reclamará:
é um humano coração - se contrai e se dilata segundo a necessidade da hora.
em suas mãos ainda abriga, dedos cravados sobre elas, recordações adocicadas,
fotos gastas, escritas reprimidas, flores insólitas.
viu mais do que supunha. acreditou em fadas, amigos, despedidas e chegadas,
portos salvadores, luzes milagrosas, palavras fáceis.
e por certo provou do cálice amargo da saudade, atravessando noites sozinho.
suturou ferimentos graves, careceu de alguma compreensão que fosse alívio,
conheceu outros corações - menos ou mais afortunados, mas igualmente nobres.
não leva arrependimento ou saudade - isso é que não!
- pendência não constava de seu vocabulário.
não era santo, bem o sabemos, não era mau tão pouco;
era o que veio ser, acredito.
parece até que só dormita, tão natural e sereno, tão menino ainda...
mesmo agora, inspira-me um certo pesar deixá-lo.
porém, a vida continuará em mim e, ironicamente, sobreviverei a ele.
não há homenagens aqui; só a assertiva de uma missão bem cumprida.

alarme

chame por mim - em voz alta, se assim necessita,
em voz baixa e grave, com a sensualidade que lhe apetece,
de dentro do escuro da sua alma, onde luz não lumia,
debaixo da árvore do jardim, com pássaros à volta,
do fundo do poço mais fundo, imerso em densas águas,
do alto do muro do vizinho, chocando tudo e todos,
no meio da praça, no meio da rua, no meio de mim
chame, chame por mim - para abrir a garrafa de vinho,
pra prantear um luto tão só seu, pra clarear o caminho
ou só para não percorrer o caminho só.
chame por mim quando sentir que a garganta sofrerá um nó,
que o peito apertou-se tanto que reduziu o espaço do coração,
que as pernas se recusam ao próximo passo,
que as mãos oscilam, vacilam, tremulam para o abraço.
chame por mim no enlace da vida com a morte, de tal sorte,
que seja como for, chegarei até você - eu o ouvirei - apenas chame.

apaixonamento

é sempre primavera, aos seus pés, como que em adorada devoção, pecaminosa e falha.
é sempre um dia de sol quando há seu riso por detrás das cobertas, por cima das horas,
sorvido com café e preguiça de estar.
um sol que me vence o torpor de enfrentar a vida e me sacia, lentamente, a alma.
é sempre assim, quando você traqueja por perto: um cheiro doce, uma fome boa,
um motivo a mais para retardar a hora de sair para trabalhar ou qualquer outra coisa.
você gravita meus mundo com absoluta segurança dos que reinam sós, ostentando seu orgulho
(e sua sabença de que este reinado lhe foi concedido sem condições).
e até a minha música preferida fez-se nossa, pelo seu querer.
e até a minha comida preferida agora é outra, para o seu desfrute.
nada é alto demais, pequeno demais, forte ou fraco o bastante:
tudo está sustento no instante da sua estadia entre meus braços.
as estações nascem e morrem como este sol que caminha pelo espaço deste céu
dentro do seu olho, pelo gosto do seu cheiro, pela cor da sua pele.
este é o tempo - relativo como cabe a cada um de nós.

por hábito

é força do hábito me virar à noite na cama, tateando o espaço:
um espaço bem grande, bem frio, bem seco - ando pelos cobertores,
alva fronha que me causa náuseas e esta insônia - estou em território estrangeiro.
como também o é confundir meus horários e tomar café insosso,
abrir a torneira da banheira e mergulhar em cenas e estratagemas crus.
é força do hábito tagarelar em voz alta pra estancar o jorro contínuo de solidão,
cantar sem voz, estrangular a emoção mal nascida, apanhada de surpresa.
quando os olhos se esquecem de sua real função e vítreos calam,
calam para tudo a seu redor e para novas perpectivas. apenas morrem
de uma morte sem dor, sem data, sem alardes.
quando os braços são longos demais e ainda assim não alcançam jamais.
quando os dias são curtos para comportar tanto amargo nas entranhas,
tanta saliva espessa, tanta hora estéril, tanto sonho abortado pelo chão.
é força do hábito continuar respirando, comendo, dormindo e acordando,
nesta imensa vida oca e desprovida de tons.

falta de ar

é branco, é cal, é puro e poroso o osso
que verga no gesto desesperado para segurar no ar
o meu espasmo - o meu corpo se contraiu como uma mola retesada.
uma chuva bruta desabou agorinha mesmo, ali, dentro da minha calma
e agora assisto aos temporais.
é branca, é sal, é espessa e densa a espuma
que abunda de minha boca na palavra que descoloriu todos os meus dias:
ruptura. soou como se um martelo tivesse atingido a nuca,
ou se do nada o céu despencasse, numa tarde sem sol.
tola a vaidade que me prendeu ao meu inútil ego,
tola vaidade...menina de verdades inventadas, se alimentando de quadros
apenas mentais, apenas sazonais, apenas água destes hediondos temporais
em que minha alma, pobre criatura de olhos arregalados, se afoga.
é escuro, é noturno, é maculado e pesado o inoportuno
estar vivenciando tanto pouco amor.

amando amar

o meu grande amor não era afinal, tão grande assim
- era apenas um menino, que trazia nos seus olhos o que eu veria em mim
num futuro não muito distante:
a capacidade de seduzir e deixar-se levar pelas mazelas do coração.
o meu grande amor era um ser humano, limitado, tacanho, sonhador
como bem me cabia. A fantasia de ser gostada, de ser amparada contra a dor,
contra a zombaria das meninas que eram já namoradas, confortava.
portanto, não havia mais o que exigir além desta situação
de namorada que tinha quem lhe amparasse, timidamente, a mão.
o meu grande amor gostava, como eu, de mar e de maçã, de poesia
e da alegria de não ter aula no sábado. ele via nosso futuro num fundo de garrafa
e eu achava muita graça em seu ar sério quando dizia que iria ser doutor.
meu grande amor nunca me levou ao cinema, nunca lanchou comigo no Mac Donald's
nunca foi comigo à beira mar. mas viajamos por países espetaculares, em jatos prata,
conhecemos cachoeiras incríveis, falamos muitas línguas, compramos casas,
tomando sorvete com calda à vontade e voltando pra casa com o raiar do sol.
hoje, o meu grande amor mudou de nome, de meta, de rosto, de expectativa
diante das sérias solicitações que a vida, implacável, faz a gente.
mas nunca será indiferente ao meu coração aquele menino, que numa brecha de tempo,
talvez o melhor tempo pra se viver acordado, foi o meu grande amor.

pertences pessoais

eu pertenço a uma história que você contou ao seu melhor amigo
e depois se esqueceu de como tinha me inventado.
eu pertenço a um passado lavado do seu corpo, a uma foto perdida na bagunça de uma caixa,
a um pedaço de papel de presente que você usa, hoje em dia, pra forrar seu armário.
eu pertenço a um plano invertido na sua vida - uma faceta da sua saudade destonada.
pertenço a um tempo da sua força de se agarrar a um amor que era pra sempre,
sem saber, realmente, do que você então falava.
me pertencem nossas idas e vindas sobre nós mesmos, colonizando espaços um do outro,
desenhando projetos com o dedo no ar.
me pertencem seu disco da Bethânia (é, não devolvi),
suas cartas onde você copiou poemas pra mim do Raimundo Rodrigues, um poster,
uma receita de um doce bom que a sua mãe fazia quando eu me materializava por lá
(que eu, lhe confesso, nunca tentei reproduzir).
nos pertence uma memória guarnecida de ternura e mútuo respeito,
um direito conquistado de não tocarmos neste assunto quando nos atropelamos por aí,
porque, afinal, já faz bem mais que um tempo, não nos pertence mais.

paisagens

os elefantes caminham pela rota poeirenta e o sol castiga a pele,
imponente e inclemente - privilégios do sol.
sobre o primeiro dos animais, atracado em seu lombo como um carrapato chato,
um menino enegrecido de estrada entoa um mantra lento e doce.
a sonoridade de sua voz faz os olhos penderem das órbitas
como pendem as flores, estampadas ao longo deste percurso, de seus ramos
- a calma desta hora faz suspirar os mortos em suas casas de tempo.
um rio corre nalgum lugar - pode-se ouví-lo, e sua beleza está neste mistério
de água profusa que em algum ponto da terra serpenteia e se vai
(uma promessa de saciedade que dá esperança à alma para que prossiga).
da pele do menino também um rio transborda, vagaroso e grosso,
suavizando a dor do animal que se esforça para atravessar mais um dia.
o menino é tão leve, a tarde é leve, mas a vida...ah! a vida pesa
aquilatando a respiração das coisas dentro das horas,
sob o sol.

é breve, é leve, é partida

eu tenho cá, dentro deste meu peito, esta fome de ser mulher,
este sempre presente receio de que o tempo me passe a perna
e por algum malfadado descuido, algum sinistro descaso, um cochilo
eu me veja diante de mim sem possibilidade de remendos ou suturas:
é que é desse jeito, a vida escoa sorrateira e permanentemente e de repente
já é hora de sair do palco - mesmo as luzes se apagaram, e você,
ora, você não viu - conta de mercado, aluguel, pagar o estacionamento,
cimentos que proibem voos e delícias, como a carícia de cada dia.
ontem eu vi meninas que já não sou, rindo de coisas que ando achando tolas,
olhando pra todo mundo como se só elas luzissem (mas bem que luziam) e
num susto, num susto mesmo! tive pena por mim - a minha menina
jaz, enjaulada, na mulher adulta que lhe imponho, ameaçadoramente,
afastando-lhe os cabelos dos olhos em rijos pregadores que domam-lhe as mechas,
na saia na medida certa, no botão mais alto, no rosto mais trancado
- onde eu flutuava, agora piso duro e compassado.
nada contra a maturidade que exibe, com seu mérito, uma sabedoria do viver
- apenas o medo desse viver não ser, exatamente, vida.

lições de minha nona

eu trouxe minha avó morta no peito quando a vi pela vez derradeira.
trouxe aquela mulher de aço diluída em areia e memória.
nem pó da mulher altiva, forte, formosa e guerreira, que fez o mundo a engolir.
trouxe minha avó numa tarde em que o céu despencava numa chuvarada
que lavava as ruas, as favelas, os bancos da praça e toda, absolutamente toda
a minha desmembrada alegria - foi quando descobri que a alma sangra.
trouxe-a muda de suas músicas alemãs, paralisada nas suas idas ao quintal,
hirta em seus braços que rachavam lenha e cercavam nossos corpos.
eu trouxe a minha avó, no auge de seus 92 anos,
corada, briguenta,suada, sorvendo a vitalidade de tudo que pudesse tocar e produzir
apenas mortal.
me enterrei aos cacos ao longo de dias contados nas lágrimas, com ela.
briguei com a fé, com a crença nos homens, com a seiva da vida que amargou
de repente, quando a vi sendo levada como ela nunca deveria ter partido.
eu ainda a trago - mas ela jamais me perdoaria se eu a carregasse,
muito menos, assim; trago-a como ela foi
- mãe, mulher, doceira, artesã, amante, alfabetizadora, tia, avó, filha.
rica demais, plena demais, viva demais, pra ser reduzida a um rasgo de dor.
ela me ensinou mais na morte do que já ensinara por toda uma vida.

chuvas de verão

certo é que virão as grandes enxurradas envoltas em verão
e as sombrinhas, aceleradas e confusas, quedar-se-ão danificadas entre transeuntes.
rios cheios de energia se enervarão com as cidades e rugirão,
feras que dormitavam em meigos leitos,
derrubando fronteiras e retomando as terras dos impotentes observadores.
calam-se os passarinhos (onde se refugiam os passarinhos?) e os cães se vão,
enquanto crianças olham o céu num misto de admiração e puro horror, e tampam os ouvidos
buscando, sem querer ocultar apenas os olhos, o refúgio em suas mães.
mulheres esticam as mãos como se medissem a densidade da água entre seus frágeis dedos,
porém se mostram impiedosas as chuvas com as rosas em seus galhos castigadas.
avós rezam a oração que esperançosa tenta calar o céu e fazer dormir dentro do escuro
- até a luz se retrai, em pleno dia, quando adentram pelo cenário as tempestades.
o mar é um tropél de cavalos selvagens arrebentando porteiras.
as árvores se curvam como se desejassem oscular a terra em que vicejam.
depois, tudo é silêncio - as fortes rajadas de vento calaram até os anjos.

Onofra

Onofra mora num morro, lá em Niterói. Uma pessoa só, como tantas o são. Vive numa modesta casinha, de porém vasto quintal, acompanhada de suas gatas (que alguém por lá jogou, pobrezinhas! Mas conhecedor do bom e generoso coração da moradora, com certeza) e de um cachorro velho, amistoso como o são todos os cães, que responde pelo curioso nome de Samir.
Onofra enterrou um marido e não criou nenhum filho, coisa que muito lastima, mas assim o quis o Criador. Aposentada, viveu da faxina de casas de amigas, pois todos se enamoram de Onofra, com seus trejeitos de criança, rosto franco, apesar de exibir já alvos cabelos. De pequena estatura, isso só lhe acentua ainda mais os traços de menina que envelheceu sem crescer. Tem um sorriso destes raros, riso frouxo, aberto e inocente, de fazer muita gente invejar. E apego enorme às suas gatas e ao seu sempre companheiro cão.
Onofra também tem uma modesta criação de galinhas e daí advém o inusitado evento que me levou a falar dela: entre as galináceas, uma há, denominada Josefa, carijó invocada, dona de ares do pedaço, que, ao desejar botar seus ovos, tira às bicadas de seu cesto e cobertas, o pobre do Samir, indo lá fazer sua desova! E Samir, coitado, acuado e indefeso diante da invasora, refugia-se na porta da cozinha da casa, de onde observa, sentado tristemente, o domínio de seu antigo território.
Onofra conta a incomum história, enquanto, às gargalhadas, bate no chão os pequenos pés. É. Também eu já me acho enamorada dela.

(...)

pensei que tinha pernas o suficiente para fugir de você.
bem, não tenho. e pensei é claro, que tinha espaço o bastante para me comportar.
é. não posso comigo, contida em minhas fronteiras fracas e aparentes.
em você passo todas as estações à beira mar, afogada e feliz.
apenas em você minha melodia se engraça com a letra da canção.
em você morro vezes sem conta, voltando a vida com fôlego novo.
apenas com você a seta da bússola condiz com a direção correta pra mim.
em você os meus olhos enxergam com a pele, com a boca, com a respiração.
apenas com você acontecem estas coisas intrigantes e gritantes,
que não ouso negar, embora delas me envergonhe (ou mais me assustem).
você dá o tom certo na minha medida e cabe perfeitamente na minha mão.
é duro ver-se assim, tão em conforme com outro corpo, tão formatada;
mas é difícil não relevar o fato de que, quando sou com você,
sou acompanhada do melhor de mim.
e todas as vezes que acho que me reconheço,
tropeço em nós dois, de novo, por fim.

cheiro de urgência

onde fico aqui? entre duas braçadas, na água enlaçada,
quanto há de mim?
no momento do gozo, entre prazeroso e jocoso, onde eu?
no intervalo direto da respiração, quando dilato este peito
e de novo retorno ao viver, o que me cabe?
presente no instante do piscar do olho, da mudança de cores
em torno do mundo que acho que é meu,
fico como?
se me apresso os passos e diminuindo abstratamente os espaços
mais me busco que tudo ao longo da vida...onde me acho?
qual a direção correta a reta mais curta o caminho mais casto
e eu, entremeada de coisas e gentes...o que faço?
escapo de conflitos aceno às memórias coleciono inglórias conquistas
e...
num belo dia (talvez chova, talvez seja noite) me desembaraço
de mim.

uma história como tantas

Janaína rima com menina, mas já não o era. Pelo contrário. Ninguém, como ela, trazia selado no peito tanto sonho picotado, desfeito, pelas andanças cá no mundo. Órfã muito precoce, diante da sorte da vida só conviveu com o azar. A fruta mais doce lhe foi negada e a menina, coitada, era escrava da lida pesada do pai que a criou. Não houve descanso bastante para sua cabeça, nem cobertor que bastasse para debelar o frio que se instalou na estéril alma. Acostumou a não ser, a não ter e, por fim, a não querer. Até que lhe veio Ana. Ana foi a filha que o mundo lhe legou - chegou num dia assim, com cara de qualquer dia, trazida pelos braços de uma prima distante, que, errante na sua história, já não a podia cuidar. Depositou-a ali, como quem deixa no meio da estrada um fardo pesado demais e se foi, misturada às coisas das ruas e às gentes. Então, algo dentro de Janaína floriu, como uma primavera fora de época que de repente desperta e rebenta em botões. E Ana sorriu para ela, como a dizer-lhe que a vida é possibilidade infinita. Sempre.

marcos e marcas

cicatriz
ao longo de mim mesma a fina linha que demarca
o limite entre a vida e a partida - sofrido adorno
no contorno do meu corpo só - um chamariz
de minha consciência sobre minha impermanência no mundo.
cicatriz que me diz que sangro e choro, que supero e me alterno
entre lá e aqui.
a verdade abstraída de uma ferida que se fechou, que se lacrou
e me deixou persistir em meus planos e caminhos.
quase um troféu, uma costura que manteve as coisas no lugar
algo a superar, algo superado.
aquela que não vejo e por vezes é na alma que habita
orgulhosa e silente como uma condecoração que testemunha
o sobrevivente em mim - posso prosseguir
e de novo me dar ao experimento do amor que sucumbe
da amizade que se vai, da decepção que lanha como lâmina.
cicatriz rima com a vontade de me reconstruir - ponto a ponto.

é sobre nós

me fale de você - sem histórias de entremeios, sem rodeios
me fale de você despido de máscaras, me assuste, me choque, me enleve.
deixe que eu degluta, que eu discuta comigo mesma a certeza (ou não) se gosto
de você sem maquiagem, sem a roupagem da rotina habitual - só você
sem identidade codificada, sem tarja, sem promessas.
sua música preferida, aquilo que lhe faz gargalhar, se dorme de camiseta,
se compra o jornal e depois se irrita, se grita de dor, se chora escondido,
se o seu sentir é digno de alaridos ou silêncios imorais.
me dê de seus pesadelos, seus projetos, seus medos, seus ais:
me dê algo em que eu possa me ver e assim revelar você na minha passagem.
seu perfume, sua saliva, sua camisa predileta, sua palavra mais difícil, seu vício
- mas me dê de você, em sua singularidade e absurda torpeza humana.
só posso amar algo que seja além de mim, seja como for, se for amor

das falas perdidas

o que você ouve do que eu que lhe digo?
daquilo que lhe dirijo, o que você realmente escuta?
quando minha voz se estrangula na garganta e seus ouvidos emudecem
me desperta questionar: você realmente consegue me ouvir?
ou passa pelo crivo da sua descrença, da sua sabença, da sua condensada seleção
se aquilo que eu lhe digo deve chegar ou não ao seu coração?
você sabe do que lhe falo, do que lhe aceno, do lhe grito
com a pele da palavra desgarrada à força do fundo da alma,
com as mãos extenuadas, banhadas em suor, a pupila dilatada,
você tem ouvidos para isso?
ou é preciso mais que os órgãos da sua audição pra poder compreender
a fala, o calar, a interrupção do que é dito, pelo pulsar descompassado e aflito
de um sentimento que extrapola toda a minha razão
e morre mudo, seco, constrito,
sem nunca ter verdadeiramente atingido uma sua emoção.

sobre marcos e marcas

você não quer conselhos - quer minha corroboração
não peso em suas decisões e tomadas de rumo
estou apenas por perto, e de certo, você pensa em voz alta.
não lhe faz falta o que eu opino, embora assegure que sim
mas eu pressinto que aí vem uma carga de responsabilidade a mais
se eu me omito e me recuso a participar das suas idas na contramão.
você aponta como bússola, cheio de verdades infladas de vento,
de suas histórias que você mesmo inventa para justificar certezas
-suas certezas - minhas não.
e quando minha clareza perturba o ar da sua graça,
sua pirraça é ignorar - o dito e o feito
- e dar um jeito de driblar minha participação.
você não tem espaço pra mim, para os meus conceitos
não se iluda (eu não me iludo): você está tão cheio de coerências e sentidos...
cabe mais nada (nem ninguém) aí não.

na medida certa

era a hora certa, eu sentia! a oportunidade exata
se eu me descuidasse, a perderia na poeira do tempo volúvel e instável
pra que me desestabilizar? de que valeria?! melhor ser cru e direta
quase ácida - olhos firmes, mãos estáticas e fala lenta, pausada, serena:
- não.
isso. tá dito. enrolando a língua na saliva grossa demais pra descer à seco.
"não", ressou estranho até nos meus próprios ouvidos e me senti em frente às comportas
à beira do desastre, debaixo de um carro saido de não sei onde.
você nem piscou - acredito que levou um tempo para decodificar o signo
e só pela expressão da minha cara é que tudo começou a fazer algum sentido.
"não? como assim, não?" ora, assim, com três letras e acento, nasalado, só.
muito só.
e as lágrimas atrapalharam tudo, porque lavaram a máscara toda, uma borradeira,
um enxame de emoções carcomidas, indigestas, atabalhoadas e comprimidas
por tempo demais, meu Deus! tempo demais pra sair civilizado assim.
- não. e precisou, eu repito. já desmanchada como a borra de café,
a tela embaçada de óleo com água, a mancha na toalha perfeita.
mas sem deixar de ser um não (atrasado, é verdade, feinho, tadinho!)
mas como só um não pode ser: forte e definitivo.

sobre nós (é sempre sobre nós)

não é verdade que eu superei; aliás, jamais menti sobre isso.
menti sobre poder lidar com isso, menti sobre prosseguir sem grandes efeitos
ou sendo razoável e centrada - nada mais seria o mesmo.
não é verdade que sou forte e isso me faz objeto de sua admiração;
equivocou-se ao virar a página antes do desfecho - não sou
(e não mereço) um objeto do que quer que seja.
sou só eu e minhas mazelas, minhas trsitezas brandas, meu silêncio nobre.
sou só eu e meus caminhos sem roteiro, meu céu sem cruzeiro do sul,
meu erro e acerto, lados da mesma moeda.
sou eu e meus discos de música cafona, minha saia preferida, meus brincos hippies.
eu
e minhas ascensões memoráveis e inesquecíveis quedas.
uma mulher. é. uma mulher.

dos justos e dos nobres

quero dormir o sono dos abençoados - imagino nuvens brancas sobre mim
um sono que vai de encontro ao meu desejo de absolvição (sei que não a mereço)
quero um sono sem fronteiras dentro de mim mesma, um sono de criança - quase um desmaio
mas espero um despertar que a isso se aquilate: úmido de frescas manhãs, novas manhãs
onde terei me perdoado pelo fardo imenso de ter sido eu nestas terras.
quero dormir aquele sono de cinderela, em meio aos espinhos para que me esqueçam
- nada de príncipes, que já não posso com pesadelos! só sono, faça-me o favor.
ah, bem que me é devido um sono dos mortais que tentam abdicar das guerras, até das pessoais
sono sem cercas, de todas as cores, para todos os tamanhos de sonhos que me alegrem.
e eu escolheria a hora de acordar - não o relógio, o celular, ou os outros!
um sono em que minha divindade me acolhesse e me reconhecesse melhor, mais iluminada,
mais livre do fardo de acordar, enfim.

dos atos de Luz

meu querido, não há salvador da pátria
não há herói de rubra capa e extraordinários poderes
não há raios verdes mirabolantes, "ets" do bem, luz incógnita benfazeja
não há mulheres com super poderes, homens de aço.
meu querido não haverá descendo do céu uma nave redentora
uma alvorada libertadora indício de novos tempos
um sol duplicado no firmamento, um rasgo na abóboda terrestre
de onde anjos, em êxtase supremo descerão braços abertos
e todos os seres humanos despertarão de seus ódios e adotarão o Amor...
não.
mas há a sua vontade e a minha, as nossas lucidez e responsabilidade.
meus braços,suas pernas, nossas possibilidades de risos e olhares redentores.
nossa capacidade incomensurável para a misericórdia, para a lida,
a espada da justiça e da igualdade a ser erguida por nossas mãos
- não porque devemos, mas porque queremos ser melhores
e dar ao nosso outro o mesmo do nosso próprio pão.
não precisamos de heróis, meu querido: somos nós a nossa salvação
ou não.

veritas

e quando abro aquele livro abandonado há tanto
com o que me deparo? um seu retrato grudado no papel ressecado.
que perigo andar pelas bordas da vida assim,
com a metade da vara, na ponta dos pés para não acordar
a si mesmo, seus holocausticos desejos, seu passado embrulhado pra presente.
é...ficar tão machucado que não se sente a própria pele sobre a carne
- o que se pressente é o desfalecer, é o buraco frio, é o soluço estrangulado.
mas a gente teima em aprender da maneira mais retumbante,
mais alarmante e que sempre marca de grosseira forma
- viver é colecionar quelóides...
sempre ao seu lado o sentimento de demora pra tudo acontecer
para depois choramingar que foi tão rápido que nem se viu.
por que eu deveria perdoar você e as coisas que você largou na minha alma?
sabe o que foi pior? tudo que você deixou eu nem sequer tenho como devolver.
o amor tem gosto de algodão doce: some numa colorida nuvem e deixa enjoo!
(eu só estou disfarçando, não é sério não, viu?)

é porque é assim

lamento, mas eu vou deixar você por agora e vou saltar
nesta grande onda prata que invadiu a praia e me convidou pra sair de mim
e descobrir a dimensão deste azul brindado de sol e sal.
eu peço licença mas a vida se estendeu de tal maneira por trás dos meus olhos
e isso me reabriu um apetite de gozar, de sonhar, de ser alada.
acredite - nada disso foi programado! por isso a urgência de absorver
este verde, este tapete de veludo rosáceo no fim da tarde, esta gente multicolorida
ilustramente desconhecida, (pelo menos por hoje, mas, quem sabe)
que atravessa sem licença o meu caminho e me atropela de histórias originais.
eu estou borbulhando em sangue, versos e musicalidade
e a verdade é que tudo passa, voo passarinho, teia que se enlaça sobre si mesma
e se rompe, sem alarido, sem prévio aviso, sem convenientes despedidas ou elegantes desculpas.
ai, me perdoa! que urgência boa de acreditar em Ano Novo, em reprogramar-se, em projetos.
que urgência de mim, só ou acompanhada, mas totalmente voltada para a Vida.

uma nova temporada

queria que meu desjejum tivesse sido o sumo da sua boca,
a carne sonolenta ainda, orvalhada em sonho e preguiça.
eu começaria logo um discurso ( quase monólogo) sobre como os seus olhos,
pela manhã, fogem da luz e viram espectros da minha silueta.
eu poderia me estender um pouco mais, adiando a hora de sair pela porta,
ainda cheirando a nós.
ou ainda, com aquele sabor de medo de não reencontrar você aqui, ao meu retorno.
em volta de mim as coisas confabulam sobre o que vivi neste espaço,
uma intrínseca conversa de dois corpos, mas de poucas falas reais.
meu corpo me parece estranho, a mim, que há tanto o carrego por aí
e mesmo meu andar me trai, num balanço de uma melodia interna e doce.
eu queria que você fosse um presente mais concreto, uma certeza mais áspera
porque eu a saberia duradoura.
o ano escorreu entre todos os nossos poros, choramos e odiamos amar,
vomitamos desaforos, forramos a cama para o outro se aquietar, enfim...
mas mesmo às manhãs sucedem-se as madrugadas e às chuvas o forte sol.
movimento e mudança - inconsistência, inconstância.
e eu continuo com sede.

sábado, 15 de outubro de 2011

Meio copo, copo inteiro

meras considerações, planos de papel
perco tempo em conjecturações e caminhos de entremeio
- são tantas as possibilidades, mas olho reto
e isto encurta o campo de visão.
a história não se renova quando temos convicções rígidas
e é sempre previsível aquele que se repete e roda num labirinto
do qual se tornou prisioneiro.
é perigoso demais se apossar de uma verdade inventada.
as velhas ideias são como filhos que não cresceram:
a promessa não foi cumprida até o fim.
por que nossa inflexibilidade diante do novo,
do desafiador, da renovação, do que chamamos
diferente?
porque temos medo - medo do que não se vê
atrás da porta, debaixo da cama, lá na esquina,
na frente do espelho, só, no banheiro.
a maioria desses medos jamais terão alguma razão
mas eles são capazes de nos fazer esgotar
uma vida inteira.

Idas e voltas

jamais pude crer em despedidas:
quando se enterra nalgum lugar o coração
ele cria veios de ferro e crava a carne sem dó.
de que vale levantar o peso do corpo e sair,
sem dar-se ao trabalho do adeus? ou dar-se?
porque jamais se vai muito longe - basta uma lembrança,
um cheiro familiar, uma saudosa canção (que, convenhamos,
sempre toca na hora errada!)
e pronto! cá de novo estamos nós, arraigados
às fotos, aos momentos, aos móveis, aos filmes
virgem santa! nunca se vai longe demais.
para partir é preciso concessões, permissões aliadas
à vontade, à dor, à solidão
de se ver só, tão só, que sucumbe ante nós a multidão
e o mundo se torna um deserto de amor e oportunidades.
nunca se vai muito longe, quando o assunto
é coisa de coração.

Jasmine

trazia sobre o peito o peso de uma vida toda
afogada
a certeza de que dias melhores não viriam - não saberia
o que fazer com eles, então, que não viessem.
não haveria tempero, colorações, formas
para ajeitar-se com aquilo, aquela criatura pachorrenta
em se transformara...quando isso, meu Deus?
de desamor em desamor alargou fronteiras movediças e vãs.
agora...agora era a época das grandes migrações,
das revoadas distantes de seu coração, este estrangeiro
que já há muito lhe falava num idioma morto.
e ela naufragaria, enredada em ilusões pueris e cantadas baratas
porque comia sonhos e digeria abandonos
com assombrosa facilidade.

A carta

não costumo escrever cartas - faltam-me paciência e boa caligrafia.
imagino que cartas devam ser como mapas astrais: reveladoras e comoventes
ou que tragam ainda o presente de uma notícia que comova, que alarde,
que retenha a alma, ainda que por breves instantes, no meio do salto,
na beirada da vida, na ponta do coração - uma seta, um esteio, um floreio.
se fosse atrever-me, perfumaria com secas lavandas e galhinhos de alecrim
e a iniciaria com uma frase bonita nascida d´algum poeta ou filósofo;
certamente, usaria um fino papel, pra dar leveza à despedida,
suavidade ao rompimento, transparência ao relato, meiguice à saudade.
suspiraria fundo a cada linha, pra secar a tremura das mãos
e os olhos - sou lacunosa e úmida ao abrir o coração
(coisas de canceriana, que se acha mãe do mundo!)
e faria uns rabiscos pelos cantos das folhas pra certificar de que era eu
(na frente de um papel, meus desenhos fogem-me ao comando).
assim, seria essa uma carta que ficaria debaixo de um travesseiro,
sobre a cômoda herdada da tia, engordurando sob uma mesa,
molhando dentro da caixa de correio exilada e gasta
- uma ilha de arrabescos e floresceres de emoções sem,
necessariamente, o acolhimento de seu destinatário.

Olhos de ver

eu vi a moça saltando no ar
dando rodopios grotescos, abrindo os braços, enlaçando nada
devorando tudo com a sofreguidão de um buraco negro.
eu vi o velho dançando uma canção inaldível, orquestrada
nalgum reduto secreto do seu coração, cantarolando para seus pés
e eles, correspondiam, fascinantes como cães fiéis: ritmavam.
eu vi a criança correndo atabalhoada entre o capim do quintal desleixado
quando adentrava num castelo inigualável, num pátio rebordado a ouro,
do seu abundante imaginário - quase sorvo sua alegria, admirando
um olhar que já não porto mais.
eu vi o homem dedilhando um violão como (é uma certeza!) jamais tocara
o corpo da mulher amada - tão sofrida entrega embaçada pela paixão.
eu vejo coisas, o tempo todo - todo o tempo
que meus olhos marejam, se assombram, se encantam,
das dores e alegrias
das paixões reinventadas, vividas em compartimentos pessoais,
explodindo na face dos que se recusam a ver.

Homenagem ao que se tem de melhor

por que não podemos mais dar as costas pra tudo
no meio da tarde quente e ir tomar um sorvete
por que não podemos mais falar com os bichos e colar
pétalas de maria sem vergonha nas unhas pra fingir esmalte
por que você precisa ter um português impecável quando conversamos
e você tem que estar de saltos altos (é pra não sair correndo?)
por que...?
eu nunca vou saber, você nunca vai entender as perguntas
e muito menos virão respostas de todos os outros
que desfilam nas avenidas com cara de fera com o mundo
e pressa, muita pressa, que isso é sinal de ocupação
- seja lá o que isso queira dizer!
por que a gente deixa nosso melhor pra vestir uma roupa
que não nos cabe, um estilo que nos reprime, as idéias que tiveram por nós?
abortar a criança que pulsa em nós é crime.um tremendo crime.
bom, a minha tá chamando pra viver. vejo você por aí...
ou não.

Da gente dessa terra

e contam-se os dias com os grãos de feijão espalhados sobre a mesa
catados com esmero pra evitar pedrinha,
lavados pelas mãos grossas e ressequidas da diária lida,
cozidos na pesada panela que se atarraca sobre o férreo fogão.
lá fora a tarde geme um sofrido chamado para que voltem aos galhos os passarinhos
enquanto na boca arde e sibila o cigarro de palha reascendido.
na domingueira pelo estradão acompanham cão e crianças,
indo à reza na capelinha encardida de poeira e vida gasta, cor do capoeirão.
à enxada tosca, a terra ruge ao ser fendida, oferecendo ao amado
um ventre avermelhado com promessa de semente boa: laranja, café, mandioca
e compassadamente rumina o boi o tédio do pasto extenso e perdido pelos montes além
- além dos homens sem certidão de nascimento, sem lápide pra cova, sem carteira
de dinheiro, de trabalho, de identidade
que este mundo se espraia pra depois da realidade em que imersos
dormimos - todos nós.

Perdas e ganhos

eu perdi a hora, o pé da história, a chamada
eu perdi a estrada certa, eu perdi o óculos na banca de jornais
eu perdi o fôlego ao me afogar em lágrimas, eu perdi a página do livro
perdi a noção do perigo quando me apaixonei, perdi a linha na fila
eu perdi a hora do dentista, perdi a dica da culinarista na tv
perdi o bom senso diante da violência, perdi a paciência com gente medíocre
perdi a calma no trânsito, perdi o celular no táxi
e mais o fio da meada, o final daquela piada, o resto do filme
depois foi a vez de perder
o grande amor da minha vida e todas as outras perdas
passaram a não significar nada.

Quando o vazio fala

todas aquelas travessas sobre a mesa e o silêncio
dorme alguém sobre o sofá, em silêncio
os corredores do prédio acusam a ausência da vassoura
nos ajuntamentos de cantos empoeirados, também em profuso silêncio.
nenhuma alma deveria saboraear, que não por escolha, a solidão
- uma solidão de uma concretude cruel e pesadíssima,
tão velha quanta a noite, tão profunda quanto a mais profunda memória.
mesmos os passos de quem vive só se incomodam com o eco
buscando, na incompreensão desta hora, fuga em silêncios,
silêncios que rugem como feras acuadas e têm olhos vazados.
a janela não vê a rua - vê o vazio onde as ausências colecionadas
instalaram um painel - de silêncios.

A nossa música

já nas primeiras notas, adivinhei a canção:
uma história foi recontada, lindamente, diante de meus olhos
agora já cerrados pra intensificar as lembranças.
meu coração se soltou de meu abraço e levitou, desafiadoramente:
eu sabia aquela letra de cor, cada palavra era minha
(um dia, não sei mais quando, foi nossa)
e diante daquela gente toda do ponto de ônibus, cantei
pra mim você de novo, reencontrado
numa canção que foi feita pra nós (ninguém me convence diferente!)
e o tempo se abriu generosamente pra voltarmos ali, no nosso momento
dentro da nossa canção, egoisticamente atentos
a nós. nada me vem de dorido ou ausente - apenas
essa vontade de cantar.

Cumplicidade

eu já estive em seu lugar, por muitas vezes...
já chorei baldes sozinha, já fiquei sentada no chão da cozinha, ou debaixo do chuveiro
ruminando preocupações.
eu já perdi gente que amava e rasguei fotos pra tentar depois colar,
eu já bati o telefone e me indignei com minha falta de controle.
já atravessei a rua pra não olhar de frente um acidente
e saber que podia ser eu ou qualquer um dos meus afetos.
eu morri de medo de escutar que me dispensavam - mas ouvi.
já pensei em sumir, mas isso é fisica e logicamente inviável
e quis mudar de casa por pavor de tomar o mesmo ônibus que ele(a).
eu já estive em seu lugar observando um berço, um parque cheio de gente,
um rio escuro, um dia ensolarado e muito quente,
até mesmo à bordo de um navio, de um avião, de um trem
sem saber se eu queria, verdadeiramente, chegar para onde estava indo.
é, eu já estive em seu lugar quando o coração parte e você jura que é a morte
mas, como em tudo o mais que citei antes, é só mais um momento
onde todos nós, nesta vida, um dia, nos reconheceremos.

Vestígio

eu já disse pra você que guardei aquela florzinha seca
dentro do meu livro de poesias do Drumond?
outro dia eu chorei por ela, mas sentia por nós.
as cores se vão, nos cenários rotineiros
e quadros diferentes se erguem entre nossas salas íntimas:
mesmo os espaços se refazem, por si só, ao longo dos acontecimentos
- hora há compartimento pra tudo, hora não cabe mais nada e se pensa em explodir.
a conveniência das emoções lhes dá uma elasticidade questionável.
também suponho que você ainda possa ter aquele amuleto,
um cordão meu que você me tomou e eu até que achei divertido
(talvez não. correntes são partidas todos os dias)
porém a verdade é a mesma, aquela
que ficou retida lá trás, onde não retornaremos
suspensa entre os núcleos existenciais, seu e meu,
num relicário de um nicho do tempo.
é uma espera longa, angustiada
café e cigarro se sobrepõe aos pensamentos, brevemente.
mas não o bastante. a luz da rua cansa. o telefone mudo cansa.
viver cansa, de vez em quando.
vinho: na temperatura ambiente - eu,cá entre nós, prefiro bem gelado
a comida descansa sobre temperos afrodisíacos
(tolice - afrodisíaco é o desejo de amar)
tudo que passa disso é tempo que não volta mais.
é assim que me deito entre as palavras - sem vírgula
sem simetria, sem cuidados.
é só assim que sei dizer de mim, sem medir muito
porque a espontaneidade pode ser educada, mas não maquiada.
bem vindos ao palco: aqui, todos nos expomos
papéis decorados, alguns de nós até convencem, outros não.
não sobra muito tempo para ensaios: a vida pega no improviso
e o final feliz é ignorado mesmo pelos melhores do ramo.

domingo, 2 de outubro de 2011

as vigílias não cessam as cobranças não param os engôdos não acabam - gira a roda sem volta cada volta é um estrondo: a vida constrói seus próprios palcos.
Não espere por mim - não me aguarde no início da noite, num fim fresco de tarde não, vá caminhar pelas ruas do bairro e contar as crianças no parquinho vá ver dias de sol e tomar chuva na boca vá - não me aguarde que a vida hoje convidou você à sair...
coloca-se cada palavra sobre a bandeja como quem colhe botões de rosas, aspirando a dádiva da gratuidade do perfume porém, sentindo-se grotesco e desajeitado para manipular a beleza. foi isso que perdemos, num dia qualquer, desavisadamente: a capacidade da delicadeza gerada dos gestos, outrora angelicais.
é complexo demais falar destas coisas todas, entulhadas aqui pela minha retórica mesmo o reflexo fica perplexo diante de minhas deformidades da alma - escondo-as, com a habilidade de um bom ilusionista! mascaro preconceitos, maquio defeitos, distorço conceitos. afinal, cada um de nós desempenha seus papéis como pode e luta com sua fera pessoal a cada passo: o que mora atrás do coração humano? quantos teriam coragem de encarar sua própria nudez...?

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

e o beijo vascilou e se agarrou ao lábio
deixando suspenso o espetáculo na praça
- o medo de amar é o medo de ser
exatamente
aquilo que você mais deseja que seja.
e depois? o que fazer?
sê apenas - sem promessas
sê na intensidade das coisas
que são até quebrarem, até gastarem, até
deixarem, humildemente, de ser
e então
torna-te outra coisa.
a verdade vê as coisas pelo seu lado
a mentira não vê, mas jura que viu
o medo não olha, jamais!
...
e o orgulho se vê: nada mais.
Um grito segue abafado
calado na marra, apertado
entre o coração e a pele entumescida:
um grito de uma vida inteira contida
numa só garrafa
- a pirraça da morte
é prolongar uma vida
gasta.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Se um dia eu tombar em batalha, foi ferida na alma, tenham disso certeza. Em meu epitáfio, desejo apenas a leveza de uma borboleta - as palavras me pesaram demais por toda uma vida. Pode ser uma rica carga, mas dói.
E se chover amanhã, não vou correr dela - a água dos céus, o espanto, o frio encanto que eu buscava em criança. Vou diminuir o passo, enquanto por mim os transeuntes, esbaforidos, correm e me olham, entre apiedados e perplexos. Preciso revisitar a menina que antes aí havia, nalgum lugar, e lavar-lhe a alma - na chuva.
Dia haverá em que você sentirá meu perfume na rua, mas não serei eu; então, por instantes talvez, sua alma gritará lá no fundo de você. E a dor de algo que você não concluiu deixará uma suave pressão em seu coração. Neste dia, neste exato dia, sua alegria será um pouco menor.
As estações moram nos homens: é sempre verão quando o coração está quente; sempre inverno, quando a tristeza impera; sempre outono ao partilharmos frutos e quando a alma exala seu inigualável perfume, é primavera...
Depois de mim as flores virão, e os passarinhos continuarão a beliscar os frutos. Depois de mim, o sol amarelará as cortinas, queimará meninos no futebol, secará as poças. Depois de mim os rios correrão, no mesmo leito, na mesma rota, dia após dia. Depois de mim, esta lua, este rosto, este silêncio, que varrerá as lembranças. Por isso, sou agora.

Figuras urbanas I

diante da janela, o carroceiro:
tábuas, papelões, restos de panela, vislumbro plásticos dobrados
e um cão - dentro da fidelidade dos dias.
seu rosto traçou todos os fatos, registrou todas as idas e vindas
as ruelas, os becos, as encruzas
uma figura cartográfica, um feito em carne e ossos
uma paisagem de vidas que se sucederam sobre vidas
em forma de singulares camadas.
passos que obedecem a um ritmo interno, cadência da rotina,
rodas e pés que se confundem no homem que deixa-se conduzir
filhos? esposa? tio de alguém? irmão de alguém?
não me atrevo - só observo, constrangida e aflita
porque ninguém nesta vida deveria saborear o prato da amargura
de voltar sem gosto pra casa, pra alguém, pra si mesmo.

Figuras urbanas II

passo todos os dias pelo pipoqueiro
- pombas cercam-no como meretrizes afoitas
nada vejo nele que não me recorde um tio querido,
um parente amado, amigo de casa já
porque entre suas coisas colorem-me balas, amendoins, saquinhos
e lá por dentro da grande panela a suprema diversão:
o barulho gostoso e alardeante dos saltos e estripulias,
o aroma de cinema durante a semana, a retomada brusca da infância
num e noutro mastigo crocante deste milagre branco
- poderia fazer nevar, o pipoqueiro,
uma neve nossa, tropical e atrevida
que alagaria as ruas de risos e de assombro!
e por uns instantes, talvez,
meninos esqueceriam a fome e velhos abandonariam a idade
para correrem, como as pombas, entre as pedras da rua cinzenta.

Figuras urbanas III

vassoura em punho o gari varre
junto de folhas, papéis, gimbas
seu dia - as ruas são corredores contíguos
e as images ao redor compõe um ruidoso cenário
que vai se atropelando e misturando aos restos varridos:
- o que vai no saco, na caçamba, na retina
possui a mesma impermanência, a descartabilidade
de um dia a mais.
um gole de água, a camisa ao corpo aderida, a flor da vida
que se abre em oportunidades de sonhos
entre um e outro recorte de jornal encontrado
em meio ao tudo e ao nada que se embaralha pelo chão
- o pó de pedra e a sua unidade crua.
vez por outra, sobem os olhos e lhes mordisca o sol
mas se é a chuva que surpreende a tarde em seu morno estado,
correria! o uniforme não poupa do frio aguado
de mais uma hora, mais um momento, ou uma varrida
pelas ruas das grandes avenidas descortinadas.

Figuras urbanas IV

bom dia! boa tarde! boa noite!
e corre para abrir a porta pra d.Ana, coitada,
que a porta é um peso só, e ela, fraquinha, pequena
vixê! lá vem a empregada do 201, com aquela saia que não pára quieta no lugar
ela bem que gosta de fazer a saia dançar: vai lá, vem cá, vai lá
ah! que isso lhe valeria uns bons duns beliscões da atenta esposa!
e a danada da menina bem que ainda manda uns olhares de soslaio... BÉIMMMMMMM!
susto com interfone, sempre, não se acostumará nem em mil anos
- severino, a luz aqui do corredor apagou! o síndico tá no prédio?
-tá ainda não, d. Márcia, mas deixe que deve ser bobage,subo aí e troco a lâmpada
-ok, mas não demore por favor!
péssima hora pra deixar a portaria sozinha, seu Claúdio tá chegando
se pega portaria sem ninguém vai di-re-to no ouvido do síndico, danêra!
olha triste, magoado mesmo, o celular que,
num silêncio sepulcral o dia inteiro, Amelinha não tocou pra ele
mas Deus me valha que lá vem descendo a empregada do 201 e aquela saia
ô, saia desassossegada, meu padim!
e corre pra abrir a porta do elevador pra d. Alice sair com o cachorro,
e socorre seu Paulino com as tantas sacas,
e atende o interfone pra ouvir d. Márcia reclamar
bom dia! boa tarde! boa noite!

Figuras urbanas V

no vidro largo e espesso balançam um rosário gasto
e um promissor sapatinho de bebê.
a idosa o olha desconfiada e atrevidamente: sabe seu direito
e resmunga para um rapazinho que aquele é um lugar reservado
ele volta sua atenção aos inúmeros veículos impacientes que o cercam
buzinas atordoantes e vacilantes bicicletas, à moda de frágeis libélulas
vêm sem aviso, de todos os cantos
o cansaço reclama sua cota do dia e suas costas doem
pois afinal doem-lhe também as pernas, longas demais para espaço de menos.
a cada toque da campainha, o imediato reflexo, o reconhecido ponto,
o adestramento eficaz.
rasga o motor uma lamúria estremecente, quase o comove
a caixa de marcha que reclama a graxa e os cuidados de anciã.
não comeu bem, olha impaciente o relógio
enquanto aquela campainha de levantar defuntos do asfalto
ressoa ameaçadora dentro da sua cabeça.
afrouxa a gravata - que o fiscal não o veja
pega, fora do ponto, uma grávida exaurida - Deus há de compensar
mas se não compensar...que é que há? também tem mãe.
poderia morar dentro daquele uniforme, daquele motor, daquela garagem
tanto o tempo que passa entre as engrenagens e pneus
esta noite dormirá pesado, como os sulcos de seu ônibus sobre o asfalto.

Partitura solitária

vejo o mundo como por um vidro
como quando em criança se cobiça biscoitos:
de onde me vem tanta fome, tanto espaço
pra comportar mais gente, mais dores, mais outros espaços?
e estou sempre esperando, como uma amante rendida,
que ele me surpreenda, que me presenteie me levando às lágrimas.
me adorno para ele: rugas, peles, cicatrizes - e por ele
me desfaço em memórias que alguém apagou
(ou se apagarão, fracas lamparinas, tênues estrelas)
mas dele, ao contrário de todos os outros, não me canso nunca
seria o mundo a minha alma gêmea?
dele tive tantos filhos, que já não posso dar conta
- todos paridos a custa de experimentos e expectativas
muitos sonharam causas, outros nasceram mortos, ainda tive prematuros
anseios de voos e escaladas infrutíferas
e de nada me arrependo - nada, entende isso?
como se fosse um rio, que voluntariamente
some no mar.

Voo bento

ah, ave santa de força tanta
que eleva a si mesma do chão.
esplendor de dúbia plumagem
imagem hipnótica que rouba à paisagem
fascínio maior - criatura de vento
sopro que sobe ao momento de gozo do pensamento
-férreos ossos, bico adunco, olhos entre espaços
que cobrem as bordas do mundo.
dá-se ao compasso de inaudível melodia
e rodopia, uma valsa nos braços de seu holocausto:
quebra as barreiras entre o céu e a terra e não teme castigos
por sua ousadia em desafiar os abismos e as leis naturais,
fazendo em si mesma eclodir um milagre concreto,
extenso, propenso à se libertar das garras do solo
- um súbito suspiro e já é só impressão essa sua presença.
de coração alardeado arrebata em seu peito acelerado
a vida que tropeça nas coisas do chão.

Eu, passarinho

o vinho estava especialmente bom
- almoço sem gosto as coisas que vão se apresentando.
hoje, eu queria levitar - desafiar a mim e ao universo
cometendo um ato proporcionalmente inverso ao usual
encontro certa resistência quando me dirijo às escadas
(eu já disse que o vinho estava especialmente bom?)
e enquanto subo, lamento minha inexorável condição
de ser preso à terra, ao solo pátrio, ao chão áspero
- fosse por mim, escolheria nuvens pesadas, céus esparsos,
longíncuos horizontes em forma de perfil de laranja.
um espelho de mar, isso! um espelho de mar comporia
minha chegada ao final - aterrissaria aos trambolhões, inexperiente que sou
nesta coisa de voos e pousos dramáticos - isso tem a minha cara!
mas feliz, feliz...
teria descoberto a expansão das asas, a possibilidade passarinho
de ser: nada de credos, cruzes, nacionalidades, cores
eu passarinho - passando pelo céu de cada dia, escolhendo
onde anoitecer.

Cilada

escrevo hoje com medo - tenho receio de azedar o paladar
porque escrevo com aquele nó na garganta que espanca a alegria
aquele desejo amargurado de sair andando e não voltar, sem saber ir
desde quando eu comecei a mascarar esta má digestão?
eu escolhi arbitrariamente malocar os sintomas ou, simplesmente,
sou covarde demais para aceitar que ando de muletas há tempos:
será que eu quero saber? será que acontecem milagres? eu, de novo,
costurando as peças puídas e descoloridas.
como vou me perdoar se sou meu algoz em movimento?
e para voltar a falar de flores, de cores, de leveza
esta pedra cinza amarrada a nó de marinheiro na minha garganta
tem que sair daí. pior: eu tenho que tirar daí!
e foi assim que eu vim parar aqui, fazendo catarse da minha agonia
brigando com este desafio de desatar esta armadilha
que eu armei - e em que eu caí.

Itinerário

notas almiscaradas, um ligeiro enjoo
o forro do sofá que saturou os olhos depois destes anos todos
a tevê insossa, insólita, indecorosa
e este espaço que deveria se chamar lar.
nenhuma identidade - nada ao que se agarrar
tudo como que se tivera colocado ali por si só
vidros volumes de livros relógios de parede e chão
um imenso e frio chão de pegadas desmoronadas dia a dia.
a alma encolhe - sabia? encolhe e se recolhe às entranhas
como se um bicho fuçasse a terra com furor e determinação doentia
- não mais voltar a ver a luz e o dia, mas simplesmente, naufragar na terra,
uma impossibilidade de porto e salvação.
e os olhos são depositários fiéis de águas mornas
e cenas que cortam mais que a palavra mais afiada
(existe o benefício da cegueira para um coração que dorme)
mas estou completamente alerta nesta hora.
são os caminhos trilhas duras e desconhecidas, desconectadas
esparsas como aves perdidas no revoo da troca de estação
- ninguém para gritar seu nome e trazê-lo de volta pra casa
ninguém para marcar a trilha, ou postar sinais
cartas que não serãao abertas - não foram escritas
juras que não serão trocadas - não foram planejadas
socorro - que não virá. não foi ouvido ( emitido?)
e uma noite longa como a vida inteira que acena
do lado de fora desta cela.

Voos

talvez, num dia em que eu não veja, você se vá
e então seus carrinhos permanecerão na prateleira
como testemunhas concretas de sua infância entre meus braços.
um dia assim, com este sol assim, você se irá
me falando, ávido de entusiasmo, da vida que você descobriu
lá fora - além do muro de nossa casa, além da sua bicicleta, além do quarto
uma vida que abraça você como já não posso
e aí eu sentarei naquela poltrona que fica em frente a porta e sorrirei,
desejando com toda essa minha força que restou que você voe,
orando para que estas suas asas
sustentem sua ânsia, sua pulsação, sua fome
- foi quando eu me distraí, um segundo, que você largou a chupeta.
outra distração boba e você comia livros e mergulhava no computador.
mais uma piscadela e os posters embaçaram na parede
- como você é rápido! como eu perdi mais momentos
de dormir com você no sofá vendo desenhos e lendo gibis
(alguém ainda fala "gibis"?)
estou aqui - sempre estarei.
e meus braços, cheios de esperança, cheios de orgulho, cheios de saudade
o enrodilharão a cada retorno, a cada reencontro.
Por enquanto, apenas voe - bem alto.
Hoje, ontem, amanhã - que diferença faz? A vida não tem calendário, horário, chegada e partida. A vida é flerte, é flash, é estampido - a vida, já disse alguém, é pra ser vivida. Se um dia eu tombar em batalha, foi ferida na alma, tenham disso certeza. Em meu epitáfio, desejo apenas a leveza de uma borboleta - as palavras me pesaram demais por toda uma vida. Pode ser uma rica carga, mas dói.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A razão da partida

eu preciso ir
a estrada me puxa a alma me embaça os olhos me refaz
e eu preciso ir
com as costas arqueadas como um cachorro bom
um cheiro de gente estranha, de água nova, de outro verdume
um ponto tão longe que me cansa a vista
mas eu preciso, preciso muito ir
e as rodas do carro derrapam sobre mim mesmo
num medo sem volta sem endereço
porque o mundo me abraça com brasa e ferro quente
e me mostra seus dentes vorazes e nodosos
e, ainda sim, preciso ir
porque não me encontro aqui então vou me buscar
nas beiradas das coisas que se atolarão em meu caminho
e me levarão a desvios e atalhos sem saída
mas me redobrarão o cuidado com os que me amam
pois que, na despedida se apertam os nós
e na distância se perdem as mágoas todas
então
eu vou.

Presença

a canção ecoou na minha cabeça
por toda a viagem
e quando me descobri com olhos molhados
não furtei ao pranto o direito da queda
solta mansa ainda que um tanto doída
não pude evitar que acordasse o coração
e ele me fitou com certo ressentimento, é claro
mas é que o outro volta das formas mais inusitadas
nos lugares menos óbvios
e nunca precisou de convites para estar lá:
na canção, na frase de um livro, num casal distraído
como se nunca partisse - é, como se nunca partisse
tento fazer adormecer novamente
meu cansado e não menos magoado coração
canto-lhe outra coisa, falo a ele das possibilidades à frente
ele quase se convence, mas, num ímpeto
volta os olhos, molhados como os meus, para trás

retrato em preto e branco

não tenho todas as respostas
- mas coleciono perguntas
o que me falta me instiga
o que me basta, me basta, é só
tenho medo das coisas que ruminam aqui por dentro
ventando ideias e expectativas desiguais
se atingi a maturidade ninguém me avisou
- que sorte a minha!
porque ainda acho maravilhoso deitar de barriga pra cima na grama
instigando estrelas
porque ainda aprecio o voo das borboletas
numa tarde morna de meia estação
porque as nuvens falam comigo - eu juro!
enquanto as esculpo em minha tela mental
enfim, ando por aí, nas entrecruzas da vida
assobiando canções de que me recordo
ou que componho de brincadeira com o som
que mais há para se perseguir de duradouro
numa existência em que não se pede pra entrar
e não se escolhe a hora de sair?!

Na espera...

sem tapetes de folhas andei o inverno inteiro
em orações vislumbrei o sol a cada nova investida
meu corpo dói - é difícil a subida
mas ficar estagnado nunca foi uma opção
quando as chuvas vierem meu rosto estará mais constrito
- faltam-me as flores e seus campos despudorados, é fatal
mas um aroma de romãs me cerca a mente
e promete dias ensolarados e praia branca
ontem as horas foram mais longas que de costume
e mastiquei com a intensidade dos lobos
- a voracidade, em certas horas, nos vai muito bem
um dia, vou abraçar este mar com tamanha coragem
que me faltará fôlego para vir à tona
passarei a viver então
entre as sereias e as tartarugas em extinção
despistando anzóis e homens.

entre pesadelos

a cama não me cabe
tenho sonhos por demais recorrentes, gritantes
e no espaço deste quarto reviro constelações
sumo por uns instantes dentro do espelho
e eis que me assusto com a minha verdadeira face
- no avesso das coisas mora sua real identidade
as fechaduras se esforçam para manter caladas as portas
mas se esforçam mais as almas
algemadas às conveniências
eu não, que não me importo com estes rostos todos
que só falam na minha cabeça
e deixo correr solta a minha impaciência
diante de todas as convenções
depois
será a vez de dias mais frios e densos
e as névoas absorverão as cores e as formas
unificando o universo ao redor, como nos meus sonhos
como neste quarto
onde há muito as paredes não cheiram tinta.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Eclipse

Um eclipse na alma:
o sereno é tão denso que me escorre pelo rosto
frio de madrugada sem dono
olho de bicho à espreita no mato
uma respiração que nem é minha - quase gutural
De todos os meus instintos
os ouvidos estão mais apurados que nunca
porque o cheiro que sinto é apenas ocre
como o de uma ferida que se recusa à cura
porque o desejo bateu a porta com estrondo
e a boca fez rachar na secura do adeus
porque a pele dorme na ilusória proteção
do esquecimento das carícias que deverão ser apagadas
Sob o lacre da memória morrem sonhos
asfixiados por uma saudade que se banha neste eclipse.

o que ficou pra trás

eu hoje me pergunto com mais frequência
se teria sido, de minha parte, demência
ter me atirado no seu abraço de olhos cravados
só em nós
mas os meus olhos feliz ou infelizmente
despertos
se aperceberam da cilada meticulosamente ignorada
pelo meu coração
e acionaram meus instintos mais adormecidos
fazendo com que eu engolisse a canção arranhando a garganta
fazendo com que meu estômago virasse no avesso
fazendo com que a minha "ira santa"
transformasse, em cinzas, os cenários paradisíacos
ainda que mentirosos
vibrados por um amor em sintonia com meu cosmo
- egoísta eu, de ardência insana, de fome sem bastança
do teu corpo
Pobre daquele que vive da dúvida
ao invés de viver de uma saudade.

Pra você (e só podia ser)

Pra você eu comporia
uma canção sem distorções
com acordes tão perfeitos que faria calar os anjos
pra você eu escreveria aquele poema
impublicável
de rimas de corar as margaridas e fazer os pássaros rir
pra você e só pra você
eu revelaria meus medos com cópias
e estamparia em preto e branco
as cores que me enchovalham as manhãs
era pra você que eu soprava bolhas de sabão
e era com você que eu falava
de amigo imaginário pra amigo imaginário
porque pra você eu vim pelas tabelas aos trancos
folheando o mundo e inventando a minha história
costurando tudo com vontade e sede de chegada
e assim
depois de tudo isso com você
eu despertaria deste trânsito frenético entre tantos mundos
e aportaria
voluntária e sofregamente
em definitivo enlevo e no expurgo de meus fantasmas
na beirada rosácea da sua boca.

Bocas

meus lábios são filetes quase algo que selados
carecem da polpuda carne de sedutoras bocas fartas
robustas pétalas em convite
não - são antes
como uma fenda aberta na barriga da terra
pelo impacto violento de um enxadão
um rasgo donde se espera a surpresa de uma água
de um broto de coisa alguma de pedra moída
- mas com vida, ah, sim! Vida...
palavras saem dali quase em murmúrio
e alçam voos e constroem causos
e dedilham prosas e tecem finais
num ensaio tímido passarinho
e
ao sorrir
a distinção dos dentes descerra
a nave da boca que vaza
imantando os olhos
me parecem quase um traço linhas tênues
no meio do retrato
quase um esboço de desenho ainda ensaiado
Lábios finos pequenos disfarçados
no meio do território da face

Reminiscências II

de onde diabos você achou que poderia
me voltar assim com este peso todo
com este cheiro mesmo
com este rosto gasto
e meu retrato na carteira como um velho troféu?
mas que é que lhe deu na cabeça
pra me acordar de novo no meio do mundo
deste meu sonho profundo da sua não permanência?
já não senti por nós dois o bastante
já não desfiz laços o suficiente
já não treinei adeus por toda uma vida?
e a ferida ?
você considerou toda uma vida de saudade?
mas eu nem sei onde estou que não desabo aqui mesmo
e eu achando que as catástrofes eram lá no Japão
tanta noite dessonhada tanta hora roída
tanta força pra não procurar de novo a sua presença
e você me surge no auge da minha sanidade
desta vez pra derrubar minhas vontades
só com um sorriso
só porque não havia nada melhor a fazer
senão me revelar o que eu me neguei
senão me postar frente ao duo do espelho
que não me poupa que não me orgulha
mas que debulha a minha alma na sua frente
outra vez

Benzeção

me guarde me agrade me preserve
de leve me preze em seu coração
me toque como quem reza mas despreza
do pecado a punição
me exiba me abrigue me exorcise
em suor e delírio da foto do corpo da nota na agenda
me prenda em cadarço de rendas e rasgue minha alma
sem consideração vacilo ou receios
me escreva nos seios seu nome em brasa que acalma as noites
me cubra os olhos da devastação dos meus sonhos
torne medonhos meus medos de perder-te
e me embale ao som dos acordes de açoites
me dê de beber num suave filete
da sua saliva
não flerte comigo acerte o passo
não há mandinga que desfaça o cadarço que enlaça
minha rota da sua
a minha carne semi crua
da abertura que faço
do ponto de cruza que traço
e que eu mesma transpasso
no seu coração.

Sobre a dor que lhe dei

me perdoe, se puder, num dia assim
sem estrelas, sem extremos, sem temores
um dia sem truques e sem promessas de outros dias
- você me chegou
e eu, tão crisálida
vestindo-me a pele com precisão cirúrgica
e eu, ainda sem maiores alvoradas
eu e as minhas embaraçadas asas
sua canção tão bonita e ritmada de falas de encantamento
me encontra assim, desarvorada e nua no meio de mim
um ensaio de pessoa, poema sem título
guinchos de roda de moinho
como é que eu me perdoo?
como foi que me castigo?
como me doem os ossos todos?
e você de olhos bem abertos
quase um susto no momento do gozo
e eu, ah, e eu
uma pipa de linha cortada
apaixonada pelo véu do céu
bruta é a pedra que protege seu ventre
nas águas doces e frias do rio
mas a sua quietude é quase uma paz
e sua dureza é seu próprio castigo
e assim é que suplico que me perdoe
por esta dor que dói funda e inocente
mas que é vontade emergente
da nascedura da semente que rebenta, enfim.

Vigília dentro das horas

Augusta me traga um chá
com aroma das flores da cidra, um toque de hortelã pimenta
me esquente as mãos, agora já tão frias e amórficas
outrora o piano da sala me permitia
giros e rodopios pelas manhãs
mas os retratos estão fixos em mim e as horas cozinham
na lenha boa do fogão
Augusta
que horas já se vão?
que amados já se foram?
que papéis são estes espalhados sobre meu espelho?
eu que já nem me vejo mais há tanto tempo
instalou-se aqui neste peito uma delituosa solidão
um desastre estes fios tão brancos misturados ao jardim
embaralham-se em minhas pernas e perturbam-me o voo
Augusta
tem um passarinho cantando lá fora
de que cor é o seu peito
de que é feita a sua história
de onde seu ninho venta?
Augusta
e o meu chá?

Canção da boa nova

no tronco forte da pitangueira
amarrei a fita vermelha pra você encontrar
um caminho de volta
a quem aposte que num entroncamento
entre estes galhos e os meus pensamentos
você pousa e me observa encantado
minha inocência enerva os descrentes
e meus anseios matam as heras e florescem
sou toda uma estação em promessa
e o sol me descama como à pitangueira
mas teimo frutos teimo florescências e folhas novas
teimo resultados ante a falta de chuva
porque todo caminho que leva também traz
e mora em toda partida uma promessa de regresso
a pitangueira cansou o campo cansou a tarde cansou
mas eu não me cansarei
de um canto que retumba no meu peito
e só eu ouço
- é antes um mantra do teu nome
ao pé desta árvore plantei-me
colha, pois.

Na espera...

em tapetes de folhas andei o inverno inteiro
em orações vislumbrei o sol a cada nova investida
meu corpo dói - é difícil a subida
mas ficar estagnado nunca foi uma opção
quando as chuvas vierem meu rosto estará mais constrito
- faltam-me as flores e seus campos despudorados, é fatal
mas um aroma de romãs me cerca a mente
e promete dias ensolarados e praia branca
ontem as horas foram mais longas que de costume
e mastiquei com a intensidade dos lobos
- a voracidade, em certas horas, nos vai muito bem
um dia, vou abraçar este mar com tamanha coragem
que me faltará fôlego para vir à tona
passarei a viver então
entre as sereias e as tartarugas em extinção
despistando anzóis e homens.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tenho sob minha cama um baú, de tosca madeira, de cheiro carvalho, de borda de couro amarelado e curtido. Lá habitam fotos, envelopes, botões, letras de músicas, recortes de jornais, figurinhas de um álbum de que ninguém se lembra mais. Lá dormitam, amigavelmente, fotos de ontem e de hoje, ignorando a débil tentativa dos homens de captar emoções no cálido papel. Lá habitam indiferentes cartas de amor e avisos de despedidas. Lá, uma rosa pousada secou sem alardes.

Letreiro na testa

tenho um frio na alma

que nada agasalha

nascido de uma despedida num ponto de ônibus

parido na hora "h" em que os olhos

desavisados e revirados, mergulharam na alma alheia

tenho este frio que permeia meus dias

mesmo ao sol

e a busca frenética, quase dolorosa

da sensação que só tive nos seus braços

- um agasalho essencial para minha vida

tenho na alma este frio

quase um peso, quase uma morte

quase condenação

um frio gerado pelo espaço vazio que deixamos.

Espaço à dois

eu sempre fiquei zangada

com as migalhas pelo chão da cozinha

- sobras do seu lanche -

ou seus sapatos embolados junto ao sofá

suas roupas penduradas de qualquer jeito

no cabideiro do banheiro

ou ainda quando você deixava a pasta de dentes

aberta na bancada

eu ficava me perguntando por quê

você nunca lembrava de juntar o jornal

ou se dava ao trabalho de pendurar sua toalha

agora

tudo isso me faz falta, todo dia, a toda hora

Patético

- a que coisas mais estranhas nos apegamos

só pra dar falta depois...

Retórica vazia

não perca tempo improvisando desculpas

- vê? Maio chegou com seus aromas de meia estação

tem outro ninho de pomba na cumieira da casa

e a grama, ah! esta indomável! Me lembra cabelos sem pente

não vale a pena ficar bolando escapatórias

as rotas de fuga sempre acabam nalgum lugar

os becos têm seus gatos conhecidos

e as chuvas ignoram o serviço de metereologia

quando se planejam férias, piqueniques, caminhadas

nem é que eu não vá ouvir - de novo -

as suas velhas, e gastas, convenhamos, histórias

mas eu realmente fico penalizada de configurar o seu rosto

estas desordens todas que lhe vão alma afora

portanto

não gaste seu tempo não abuse do meu não brinque com a vida

simplesmente

vá em frente, não se vire, não se importe

feche a porta quando sair.

Os campos e a semeadura

Baixemos as armas, meu amigo

ambos podemos nos dar ao luxo de desprezar medalhas

e os gritos da platéia

é uma pena eu estar cansada e você tão alheio

maravilhas desfilam, incontáveis, diante das janelas

o campo se estende vasto e fértil e espera a mão que semeia

tudo fica assim sublimado:

cicatrizes, bandeiras ora asteadas, companheiros caídos na luta

tudo num sopro de vento como se sonhássemos

e as nossas passadas penetrando a pele da terra

e deixando a história

curtida no couro do mundo.
Ah, o espanto! Expandir-se o peito tanto e tanto, de não caber mais soluçar. A esquina que dobra cada vez mais longe, mais longe aquela onda que revela o seio do mar. Ah, meu pranto...lava rua, lava tinta, lava a mancha que toma forma de encanto e desatino, que platina a lua, depois desmancha no ar. E eu, neste canto de vida, buscando sanar a ferida sem a deixar revelar...

terça-feira, 3 de maio de 2011

Na porta da gaiola

geme o gonzo da porta uma música de ais
e eu ensaio novamente olhar para o mundo
com certo afeto e alguma confiança
há tempos meus pés não tocam o chão - flutuo
solta de certezas metas e propostas de chegada
não me sinto pronta para este salto
algo dentro de mim gela e treme e sofre
com a possibilidade de respirar
- quem disse que a oportunidade de ser feliz
não assusta?
o que assusta mais é não saber ser mais feliz
do que dizem que a gente já é
já reparou no pássaro que acalanta, todo dia,
em um sofrimento feito música de pranto, a liberdade roubada?
já o viu titubear quando a porta da gaiola é aberta?
pois
coisas dos vales do coração - às vezes há luz
às vezes não.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Campo de batalha

não vou longe

com meus olhos encharcados de imagens suas

meus ouvidos ensopados de suas falas prontas

meu corpo castigado por abalos periódicos, sistêmicos

não dá pra ir mais longe

do que já me afastei de minhas cercas e certezas

e toda bagagem vã - sonhos, desejos, carências -

foi devidamente abandonada durante este percurso

minhas mãos têm suportado o vazio

com coragem e altivez, mas cada vez mais

com grandes dificuldades

e meu coração tem lutado guerras que não são suas

sem murmurar, mas já se veem as grandes fraturas

é, não vou longe não, meu amigo

você obteve espaços demais.

Apenas em fotografias

eu vivo desviando meus passos

destes estilhaços todos aqui, pelo chão

e evito fazer muito alarido

porque meu coração atualmente se assusta

e corre em desabalada loucura se perdendo

eu tenho ficado à espreita do momento certo da palavra santa

do olhar que me salva

mas confesso-me um tanto cansada

de cerzir e de remendos

de estações e cais oportunos para o desembarque

de me agarrar febrilmente aos álbuns de fotos

veja só eu que sempre comprei minhas batalhas

agora ergo bandeiras de apelo de paz

será oportuno dizer da minha pouca vontade

para delongar debates e explicações óbvias

acho que de alguma forma envelheço

rapidamente

e as coisas todas me parecem passageiras demais

para tanto esforço despendido com o ficar por aqui

entre eu e o outro

como se fosse uma questão que estivesse atada

a tão somente uma escolha.

Retórica vazia

não perca tempo improvisando desculpas

- vê? Maio chegou com seus aromas de meia estação

tem outro ninho de pomba na cumieira da casa

e a grama, ah! esta indomável! Me lembra cabelos sem pente

não vale a pena ficar bolando escapatórias

as rotas de fuga sempre acabam nalgum lugar

os becos têm seus gatos conhecidos

e as chuvas ignoram o serviço de metereologia

quando se planejam férias, piqueniques, caminhadas

nem é que eu não vá ouvir - de novo -

as suas velhas, e gastas, convenhamos, histórias

mas eu realmente fico penalizada de configurar o seu rosto

estas desordens todas que lhe vão alma afora

portanto

não gaste seu tempo não abuse do meu não brinque com a vida

simplesmente

vá em frente, não se vire, não se importe

feche a porta quando sair.

flores de pedras (para minha avó)

me visto de coragem pra vir aqui
todos os dias, todas as vezes
e no esforço mora meu merecimento
- aqui o tempo passa sempre muito mais lento
e a sua vida nunca foi tão premente
me lembro de cheiros e verões
de comida de domingo e mãos sujas de terra
me lembro que você tinha o bolso mais fundo do mundo
e seu estoque de balas, dentro dele, era inimaginável
quando chego por estas bandas no entanto
é recompensador
constato animadamente a sua plena ausência:
você jamais se manteria inerte em lugar nenhum
- nunca foi da sua natureza a mera observação -
e as tardes sem boa prosa não a conteriam
assim, volto, de novo, pra uma casa
vazia de você, mas absolutamente convicta
da sua permanência.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Gosto de uma noite sem legendas

Estes pedaços me incomodam

espalhados sob a minha pele e tão aguçados

tão plenos ainda de aromas que foram deixados

lá trás

Me sinto deveras desconfortável

com esta voz estagnada na porta dos sentidos

me fazendo a garganta arranhar

e matando as canções que fui capaz de decorar

Eu estava plena pronta atenta

mas meu suprimento de amor em baixa

me expôs

Que raiva

sua saliva ter sabor próprio

sua textura ser tão viciante e cínica

você ser tão desconcertantemente essencial

perplexa

assisti você me chafurnar a alma

violar o receptáculo do meu peito

e se expandir como uma raiz, em silêncio, sem descanso

enquanto exalava um pretexto de promessa

um olho de pedido adocicado

sem professar palavra

Então

bem-vindo o fim de tudo isso

porque assim deve ser: começa e termina

sem muito se ter onde se segurar.

Pra quem já teve (?) um grande amor

E

tem aquele amor que nunca vai embora

aquele tipo de amor

que faz você se envergonhar por sentir tanta inveja

quando vê dois jovens agarrados contra o muro

ou

alheios ao óbvio e indiferentes à fragilidade de um segundo

se sentarem abraçados

quase entrelaçados

tão imersos um no outro

que o mundo já não lhes convêm

ali, num banco de jardim

Aquele amor que não se gasta

que não tem consolo curativo de amigo que dê jeito

que não há outro amor que dê jeito

que não tem tempo que por mais que passe dê jeito

Um tipo de amor que quando acabou

fez você jurar que ia morrer e...

droga! Você não morreu

e outro, o outro também não morreu

A vida seguiu como nada tiveste visto previsto programado

as canções como se não tivessem sido balbuciadas

as mãos como se nunca tivessem ficado embaraçosamente suadas

as esperas como se nunca tivessem parecido eternas

escritos não tivessem sido todos os poemas

incontáveis juras não tivessem se acasalado à alma

ou a respiração tanta vezes parado – parava, eu juro!

Aquele amor que você deseja uma vida inteira conhecer

e daria a sua vida inteira pra não ter sentido

porque cala tão fundo, tão vívido, tão amargo

que é bom, é muito, muito bom

mas de que você nunca terá certeza

absoluta certeza

se não teria sido até melhor não o ter vivido...

Em algum lugar aqui por dentro

Sempre houve este lugar

e dele é forçoso dizer

que nada o preencherá

uma paisagem de lastros firmes chão exato

sem muitas coisas a enevoar ou ludibriar seus percalços

uma paisagem

que orgulhosamente ostenta vales e cumes

numa singular propriedade sobre o espaço

nada ali convida ao ficar

porque há segredos que adormecem sobre sua tez

e nasceram para isso - serem sepultos e sós

nada ali convida ao frutificar

porque ali desovam as desilusões

e elas têm vergonha das verdades veladas

Nesta paisagem o que encanta o olhar

é o mesmo que nos encanta num deserto

- a certeza duma fonte oculta sobre a areia que escalda

enquanto range os dentes ao viajor

e em seu céu despovoado de estrelas

uma desmesurada lua faz as vezes de cortesã

- compensações de uma tela sem retoques

Nem todo ouro compra nem toda mulher trai

nem todo solo é fértil nem toda carne cai

nem todo amor é eterno nem toda dor se vai.

Mas num campo como esse

sempre há espaço para mais que uma divagação

Beira de praia

O mar é uma extensão dos meus membros

um estiramento dos meus ossos

sempre estive lá como ele com ele nele

uma profunda comoção me acerca quando próxima a ele

útero mórfico plano insustento abraço de rochas

um mar já vivia dentro de mim antes de mim

e sua salobridade me vem a boca até sem o querer

- quase transbordo corais e sereias

suas areias são contas de contos de um sinistro rosário

alardeiam filamentos de corpos e preces por retornos

nada me passa desapercebido quando nele me deposito:

aves, vultos de peixes, orgia de algas, cheiro de terras

um eu que não é meu, que sempre foi dele

- o vento que lhe encrespa a face é o vento que me afaga

é desta fúria dos elementos que se embebeda a alma

e é nele que ela hiberna durante os malogrados temporais

O mar sempre coube em mim - mistério!

Mudam as estações e os homens

mas a sua impermanência é um alento

neste mundo de coisas rápidas e descartáveis

no seu plano de existência a lição da transitoriedade

é a regra da casa

dá-se, generoso que é, todos os dias ao céu por espelho

ele é o único que me rouba os olhos

que me quebra a bússola

que me rompe os tímpanos

O mar se confunde com esta minha momentânea estampa

e qualifica minha concha me ornando de cal e sol.

Na travessia

Eu me imagino doída

já que aquela cicatriz se transformou numa libélula

meu braço alcança minhas interrogações

- rodopiam como moscas ao meu redor

mas ele não as distrai

estou em profunda ebulição

sei disso porque meu coração arde

e a janela já não me detém:

voo cada dia voos mais distantes

e demoro cada dia mais para voltar

As coisas que a gente inventa pra calar

o que alma berra...e não cala

Eu acenderia um cigarro agora - mas eu não fumo

então rabisco coisas sem compromisso num papel

sempre fico assim quando o sol me chega

rasgando as pupilas avançando pela garganta

me lembrando que preciso arrancar outra folhinha

deste calendário interno

as minhas perguntas estão cansadas de si mesmas

quem pode culpá-las?

É da sua natureza de existir

sem respostas

como é da minha natureza de existir

parí-las sem parar, ainda que exausta

Eu gostaria de ser uma ilha

e abrigar um naúfrago de amores

eu o alimentaria - como não posso fazê-lo por mim

e veria os dias atravessando o tempo em seus olhos

(é bem fácil quando é na pele dos outros)

Mas sou uma ponte, não uma ilha

e aqui não se detém ninguém.

Por detrás dos dias

Não sei se a manhã é fria ou o frio me percorre a alma

o olhar ainda embaçado não permite distinguir

qual foi o jeito errado em que distendi o músculo do coração

eu quero dançar

na beirada de um edifício no alto de seu 100º andar

pra testar novos voos e gostos e poder olhar

o mundo destas ilusórias passagens cá embaixo

em sua correta dimensão

A pele não me cabe mais e é um desconforto apertar-se assim

como num espartilho mal costurado

e esta cara que teve tantas possibilidades outrora

hoje é uma estranha que me arreganha dentes no toucador

Eu sei que vai passar - sempre passa

esta história de dias mal dormidos e mal acordados

mas é quando tenho mais saudades de um não sei quê

que fica preso entrecortado entre a garganta e a própria voz

Devia ter mais cuidado ser mais seletiva

ao escolher o cenário da própria história que se vai protagonizar

Um dia é uma contenção da barragem uma fragilidade anciã

quando se suspira demais pra se dar conta de outra manhã.

Quando uma mulher ama um homem

O homem que eu amo

é capaz de fazer minha alma alçar voo e dar testemunho da dor do inferno

Só ele detém poderes sobre o tempo

que é veloz ou algoz segundo sua chegada

ele fala comigo num idioma próprio

e meus ouvidos percebem música quando seus passos se anunciam nas escadas

O homem que eu amo exala um aroma inconfundível

que minha pele distingue no escuro sem estrelas

e isso faz um sol de meio dia despontar no meu corpo inteiro

ele percebe minhas fomes e febres

pelo olfato apurado de seu prazer

O homem que eu amo tem dedos impressos nos meus dedos

digitais que se embaralham às minhas e cores de lume

que fazem o mundo mais convidativo ao meu despertar

seu ritmo ao cantar desacelera meu coração

mas seu silêncio me cala a alma e traz o mar aos meus olhos

Esse homem poderia ser qualquer homem que

um dia

se atreveu a mergulhar num instante de sedução

mas não

o homem que eu amo tem no espírito cigano talhado o meu nome

que ele arrancará um dia mas que o marcará para sempre

enquanto minha essência se abrirá numa flor fractal e rubra.

Rebelde com causa

Esperam de mim

que eu tenha formas que não são minhas

modos que são tradicionais

que eu me case de véu e grinalda

que eu fale baixo e não gargalhe alto

que eu saiba andar de salto alto sem virar o pé

que eu leia muito estude muito trabalhe muito

e descubra sem susto que enquanto fazia isso tudo

envelheci

Esperam de mim que eu use o que está na moda

que eu leia três jornais duas revistas um best-seller

que mastigue de boca fechada e olhos murchos

que eu me revele discreta mas sedutora

fogosa mas recatada

humilde mas com aquele certo orgulho sustentado no olhar

Esperam de mim que eu tenha ideias claras

num mundo baço e confuso

que eu tenha uma fé inquestionável

e valores inabaláveis

pra combinar com meus desgostos indisfarcáveis

que eu não erre e se errar disfarce

que eu agradeça sempre

e sorria mesmo se meu coração sangrar

Esperam de mim algo robótico

planejável programável aceitável

Esperam demais de mim

principalmente

coisas de que eu não gosto e que não fiz e não farei

com certeza

questão nenhuma de acatar

Isso de ser mulher

Toda mulher nasce sabendo das coisas do tempo

da hora da germinação das sementes

e é expoente de fé na vida de um homem

e muitas das vezes sua perdição

toda mulher é consumida e se consome

da fome de amor que ela não sacia com ninguém

toda mulher lê nas estrelas toda mulher levita no gozo

e traz em seu corpo o ciclo da lua e das marés

toda mulher palpita ao toque das mãos amadas

toda mulher reúne bruxa e fada

são todas ladinas sereias bailarinas

toda mulher chora por tudo e por nada

toda mulher sabe ser a safada a santa a filha e a mãe

é conto de areia é canto de iara é orvalhada

toda mulher seduz e finge ser seduzida abduzida pela paixão

e toda ela é festa quando lhe aquece o coração o cheiro amado

Toda mulher é solo fértil das ilusões mais infantis

e ela sabe bem o que diz quando diz não

toda mulher é sementeira toda ela ela inteira é criação

ela embala nos braços o filho a pátria o sonho

ela acorda à noite pra convocar os anjos

e solta seus demônios quando ocorre traição

Toda mulher

carrega num ventre lacrado o segredo

do que ainda nem foi gestado

e mesmo sem parir

toda mulher é mãe diante da possibilidade de amar

porque toda mulher

é uma eterna rosa menina em botão.
A fome de amor come todos nós, todo dia...construímos cidades, mas não edificamos nossos espíritos. Damos computadores aos nossos filhos e eles não experimentam o toque do calor humano. Nos isolamos em apartamentos e temos medo de quem nos acompanha no elevador. Estamos todos morrendo de solidão em grandes centros urbanos. Precisamos repensar a vida e as verdadeiras miséria e fome.

Entranhas II

Porque dentro de mim mora a poeira das estrelas
e em minhas células pulsam baleias, aves e morros de uma paisagem distante.
Em minhas veias,
adoça o meu sangue um destino de muitos comungado por um só
e as vozes que soam aos meus ouvidos são chamados de um tempo
em que o vento desfraldava mares e almas.

Esfera III

Sofro de uma mansidão que me enleva a alma,
e ao sair do chão perco-me em muitos
- a hora do desapego é de agregação,
e os olhos estão mais abertos quando secos.
Porém
o céu é vasto e minha alma treme diante da possibilidade do infinito
- retorno então para a dimensão do efêmero.
Ainda não estou pronta pra voar...
No código do tempo a lei é dura, a recompensa pouca, mas a sabedoria é vasta. Uma hora anula outra, e uma à outra não se basta. O Agora é permanente lembrança do passado ou o anseio pungente de um sonho a ser materializado. Mas a vida segue plena, dadivosa a quem a busca. Não se deve perder tempo correndo atrás das borboletas
Num campo de girassóis deitaram-se, certa tarde, dois amantes enebriados em si mesmos. A noite os buscou aflita e atenciosa, revelando-lhes o passar de mais um dia. Mas o que é o tempo para os que mergulham nas retumbantes orlas do amor, senão um detalhe rápido e quase desapercebido ao olhar...

Entranhas I

No meu avesso vejo os meus sonhos em gestação,
as minhas ideias que se engalfinham, lentamente, pelo meu sangue,
minhas órbitas coloridas e meus tentáculos emocionais.
Pelo meu avesso caminham todas as minhas fomes,
contidas, escondidas, silentes.
Neste meu avesso mora um tempo em que não habito,
mas que se faz presente na minha boca, por inteiro.

Esfera II

A custo me vem as forças para deixar-te
um mar de perfumes de corpos, de cafés, de maresia, de estradas
a custo me vem também a saliva morna de onde me provém o sabor de término,
de acertos, de idas
não se olha para trás nas despedidas nem nos enterros
a possibilidade de retorno deve ser extinta
como a brasa que cicatriza, no ato da queima,
a latente ferida.

Esfera I

As cortinas, cerradas, são muralhas mal montadas onde penso que me escondo
do trote ansioso dos acontecimentos que se rebelam
e sem antecipar avisos me atropelam
no âmago das coisas:
o olhar que eu provocava
a carne que desejava, maldosa e secreta
a descoberta de não poder voltar atrás
o preço de tudo - a antiga paz que já não me cabe
- uma mortalha sem vãos.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

S.O.S

Penso muito em nós dois, talvez demais
e de pensar embarco em divagações que me exortam
à outros amores
melhores que você, piores que nós dois
que diferença faz?
A minha paz de espírito foi penhorada
e o lance de produzir algo de novo não deu em nada
São as mesmas flores no início, os mesmos jargões
e pelas coisas mais tolas desta vida as mesmas discussões
de pensar assim tão constatemente nesta luta em pleno cio
faço um pacto comigo que lá no fundo repudio:
não me oferecer de imediato aos desvarios das entregas
e estabelecer logo de início que tudo isso é um jogo
eu é quem tenho que seguir algumas regras
não se trata de frieza pessimismo desencanto
apenas procuro preservar-me e não deve ser espanto
pra quem já amou em exagero que se chegue a conclusão
de que o amor entre dois seres tem lá suas vantagens
e prazeres
mas também tem seus revezes e barrancos e seus trancos
olha, eu sou só eu mesma, umazinha, tenha dó
e se despida de mim mesma em sua frente dá um nó
na garganta no estômago nas ideias
preciso urgentemente do bote salva-vidas
já que este mar tempestuoso tem muitas idas, mais do que vindas.