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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tenho sob minha cama um baú, de tosca madeira, de cheiro carvalho, de borda de couro amarelado e curtido. Lá habitam fotos, envelopes, botões, letras de músicas, recortes de jornais, figurinhas de um álbum de que ninguém se lembra mais. Lá dormitam, amigavelmente, fotos de ontem e de hoje, ignorando a débil tentativa dos homens de captar emoções no cálido papel. Lá habitam indiferentes cartas de amor e avisos de despedidas. Lá, uma rosa pousada secou sem alardes.

Letreiro na testa

tenho um frio na alma

que nada agasalha

nascido de uma despedida num ponto de ônibus

parido na hora "h" em que os olhos

desavisados e revirados, mergulharam na alma alheia

tenho este frio que permeia meus dias

mesmo ao sol

e a busca frenética, quase dolorosa

da sensação que só tive nos seus braços

- um agasalho essencial para minha vida

tenho na alma este frio

quase um peso, quase uma morte

quase condenação

um frio gerado pelo espaço vazio que deixamos.

Espaço à dois

eu sempre fiquei zangada

com as migalhas pelo chão da cozinha

- sobras do seu lanche -

ou seus sapatos embolados junto ao sofá

suas roupas penduradas de qualquer jeito

no cabideiro do banheiro

ou ainda quando você deixava a pasta de dentes

aberta na bancada

eu ficava me perguntando por quê

você nunca lembrava de juntar o jornal

ou se dava ao trabalho de pendurar sua toalha

agora

tudo isso me faz falta, todo dia, a toda hora

Patético

- a que coisas mais estranhas nos apegamos

só pra dar falta depois...

Retórica vazia

não perca tempo improvisando desculpas

- vê? Maio chegou com seus aromas de meia estação

tem outro ninho de pomba na cumieira da casa

e a grama, ah! esta indomável! Me lembra cabelos sem pente

não vale a pena ficar bolando escapatórias

as rotas de fuga sempre acabam nalgum lugar

os becos têm seus gatos conhecidos

e as chuvas ignoram o serviço de metereologia

quando se planejam férias, piqueniques, caminhadas

nem é que eu não vá ouvir - de novo -

as suas velhas, e gastas, convenhamos, histórias

mas eu realmente fico penalizada de configurar o seu rosto

estas desordens todas que lhe vão alma afora

portanto

não gaste seu tempo não abuse do meu não brinque com a vida

simplesmente

vá em frente, não se vire, não se importe

feche a porta quando sair.

Os campos e a semeadura

Baixemos as armas, meu amigo

ambos podemos nos dar ao luxo de desprezar medalhas

e os gritos da platéia

é uma pena eu estar cansada e você tão alheio

maravilhas desfilam, incontáveis, diante das janelas

o campo se estende vasto e fértil e espera a mão que semeia

tudo fica assim sublimado:

cicatrizes, bandeiras ora asteadas, companheiros caídos na luta

tudo num sopro de vento como se sonhássemos

e as nossas passadas penetrando a pele da terra

e deixando a história

curtida no couro do mundo.
Ah, o espanto! Expandir-se o peito tanto e tanto, de não caber mais soluçar. A esquina que dobra cada vez mais longe, mais longe aquela onda que revela o seio do mar. Ah, meu pranto...lava rua, lava tinta, lava a mancha que toma forma de encanto e desatino, que platina a lua, depois desmancha no ar. E eu, neste canto de vida, buscando sanar a ferida sem a deixar revelar...