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quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A razão da partida

eu preciso ir
a estrada me puxa a alma me embaça os olhos me refaz
e eu preciso ir
com as costas arqueadas como um cachorro bom
um cheiro de gente estranha, de água nova, de outro verdume
um ponto tão longe que me cansa a vista
mas eu preciso, preciso muito ir
e as rodas do carro derrapam sobre mim mesmo
num medo sem volta sem endereço
porque o mundo me abraça com brasa e ferro quente
e me mostra seus dentes vorazes e nodosos
e, ainda sim, preciso ir
porque não me encontro aqui então vou me buscar
nas beiradas das coisas que se atolarão em meu caminho
e me levarão a desvios e atalhos sem saída
mas me redobrarão o cuidado com os que me amam
pois que, na despedida se apertam os nós
e na distância se perdem as mágoas todas
então
eu vou.

Presença

a canção ecoou na minha cabeça
por toda a viagem
e quando me descobri com olhos molhados
não furtei ao pranto o direito da queda
solta mansa ainda que um tanto doída
não pude evitar que acordasse o coração
e ele me fitou com certo ressentimento, é claro
mas é que o outro volta das formas mais inusitadas
nos lugares menos óbvios
e nunca precisou de convites para estar lá:
na canção, na frase de um livro, num casal distraído
como se nunca partisse - é, como se nunca partisse
tento fazer adormecer novamente
meu cansado e não menos magoado coração
canto-lhe outra coisa, falo a ele das possibilidades à frente
ele quase se convence, mas, num ímpeto
volta os olhos, molhados como os meus, para trás

retrato em preto e branco

não tenho todas as respostas
- mas coleciono perguntas
o que me falta me instiga
o que me basta, me basta, é só
tenho medo das coisas que ruminam aqui por dentro
ventando ideias e expectativas desiguais
se atingi a maturidade ninguém me avisou
- que sorte a minha!
porque ainda acho maravilhoso deitar de barriga pra cima na grama
instigando estrelas
porque ainda aprecio o voo das borboletas
numa tarde morna de meia estação
porque as nuvens falam comigo - eu juro!
enquanto as esculpo em minha tela mental
enfim, ando por aí, nas entrecruzas da vida
assobiando canções de que me recordo
ou que componho de brincadeira com o som
que mais há para se perseguir de duradouro
numa existência em que não se pede pra entrar
e não se escolhe a hora de sair?!

Na espera...

sem tapetes de folhas andei o inverno inteiro
em orações vislumbrei o sol a cada nova investida
meu corpo dói - é difícil a subida
mas ficar estagnado nunca foi uma opção
quando as chuvas vierem meu rosto estará mais constrito
- faltam-me as flores e seus campos despudorados, é fatal
mas um aroma de romãs me cerca a mente
e promete dias ensolarados e praia branca
ontem as horas foram mais longas que de costume
e mastiquei com a intensidade dos lobos
- a voracidade, em certas horas, nos vai muito bem
um dia, vou abraçar este mar com tamanha coragem
que me faltará fôlego para vir à tona
passarei a viver então
entre as sereias e as tartarugas em extinção
despistando anzóis e homens.

entre pesadelos

a cama não me cabe
tenho sonhos por demais recorrentes, gritantes
e no espaço deste quarto reviro constelações
sumo por uns instantes dentro do espelho
e eis que me assusto com a minha verdadeira face
- no avesso das coisas mora sua real identidade
as fechaduras se esforçam para manter caladas as portas
mas se esforçam mais as almas
algemadas às conveniências
eu não, que não me importo com estes rostos todos
que só falam na minha cabeça
e deixo correr solta a minha impaciência
diante de todas as convenções
depois
será a vez de dias mais frios e densos
e as névoas absorverão as cores e as formas
unificando o universo ao redor, como nos meus sonhos
como neste quarto
onde há muito as paredes não cheiram tinta.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Eclipse

Um eclipse na alma:
o sereno é tão denso que me escorre pelo rosto
frio de madrugada sem dono
olho de bicho à espreita no mato
uma respiração que nem é minha - quase gutural
De todos os meus instintos
os ouvidos estão mais apurados que nunca
porque o cheiro que sinto é apenas ocre
como o de uma ferida que se recusa à cura
porque o desejo bateu a porta com estrondo
e a boca fez rachar na secura do adeus
porque a pele dorme na ilusória proteção
do esquecimento das carícias que deverão ser apagadas
Sob o lacre da memória morrem sonhos
asfixiados por uma saudade que se banha neste eclipse.

o que ficou pra trás

eu hoje me pergunto com mais frequência
se teria sido, de minha parte, demência
ter me atirado no seu abraço de olhos cravados
só em nós
mas os meus olhos feliz ou infelizmente
despertos
se aperceberam da cilada meticulosamente ignorada
pelo meu coração
e acionaram meus instintos mais adormecidos
fazendo com que eu engolisse a canção arranhando a garganta
fazendo com que meu estômago virasse no avesso
fazendo com que a minha "ira santa"
transformasse, em cinzas, os cenários paradisíacos
ainda que mentirosos
vibrados por um amor em sintonia com meu cosmo
- egoísta eu, de ardência insana, de fome sem bastança
do teu corpo
Pobre daquele que vive da dúvida
ao invés de viver de uma saudade.

Pra você (e só podia ser)

Pra você eu comporia
uma canção sem distorções
com acordes tão perfeitos que faria calar os anjos
pra você eu escreveria aquele poema
impublicável
de rimas de corar as margaridas e fazer os pássaros rir
pra você e só pra você
eu revelaria meus medos com cópias
e estamparia em preto e branco
as cores que me enchovalham as manhãs
era pra você que eu soprava bolhas de sabão
e era com você que eu falava
de amigo imaginário pra amigo imaginário
porque pra você eu vim pelas tabelas aos trancos
folheando o mundo e inventando a minha história
costurando tudo com vontade e sede de chegada
e assim
depois de tudo isso com você
eu despertaria deste trânsito frenético entre tantos mundos
e aportaria
voluntária e sofregamente
em definitivo enlevo e no expurgo de meus fantasmas
na beirada rosácea da sua boca.

Bocas

meus lábios são filetes quase algo que selados
carecem da polpuda carne de sedutoras bocas fartas
robustas pétalas em convite
não - são antes
como uma fenda aberta na barriga da terra
pelo impacto violento de um enxadão
um rasgo donde se espera a surpresa de uma água
de um broto de coisa alguma de pedra moída
- mas com vida, ah, sim! Vida...
palavras saem dali quase em murmúrio
e alçam voos e constroem causos
e dedilham prosas e tecem finais
num ensaio tímido passarinho
e
ao sorrir
a distinção dos dentes descerra
a nave da boca que vaza
imantando os olhos
me parecem quase um traço linhas tênues
no meio do retrato
quase um esboço de desenho ainda ensaiado
Lábios finos pequenos disfarçados
no meio do território da face

Reminiscências II

de onde diabos você achou que poderia
me voltar assim com este peso todo
com este cheiro mesmo
com este rosto gasto
e meu retrato na carteira como um velho troféu?
mas que é que lhe deu na cabeça
pra me acordar de novo no meio do mundo
deste meu sonho profundo da sua não permanência?
já não senti por nós dois o bastante
já não desfiz laços o suficiente
já não treinei adeus por toda uma vida?
e a ferida ?
você considerou toda uma vida de saudade?
mas eu nem sei onde estou que não desabo aqui mesmo
e eu achando que as catástrofes eram lá no Japão
tanta noite dessonhada tanta hora roída
tanta força pra não procurar de novo a sua presença
e você me surge no auge da minha sanidade
desta vez pra derrubar minhas vontades
só com um sorriso
só porque não havia nada melhor a fazer
senão me revelar o que eu me neguei
senão me postar frente ao duo do espelho
que não me poupa que não me orgulha
mas que debulha a minha alma na sua frente
outra vez

Benzeção

me guarde me agrade me preserve
de leve me preze em seu coração
me toque como quem reza mas despreza
do pecado a punição
me exiba me abrigue me exorcise
em suor e delírio da foto do corpo da nota na agenda
me prenda em cadarço de rendas e rasgue minha alma
sem consideração vacilo ou receios
me escreva nos seios seu nome em brasa que acalma as noites
me cubra os olhos da devastação dos meus sonhos
torne medonhos meus medos de perder-te
e me embale ao som dos acordes de açoites
me dê de beber num suave filete
da sua saliva
não flerte comigo acerte o passo
não há mandinga que desfaça o cadarço que enlaça
minha rota da sua
a minha carne semi crua
da abertura que faço
do ponto de cruza que traço
e que eu mesma transpasso
no seu coração.

Sobre a dor que lhe dei

me perdoe, se puder, num dia assim
sem estrelas, sem extremos, sem temores
um dia sem truques e sem promessas de outros dias
- você me chegou
e eu, tão crisálida
vestindo-me a pele com precisão cirúrgica
e eu, ainda sem maiores alvoradas
eu e as minhas embaraçadas asas
sua canção tão bonita e ritmada de falas de encantamento
me encontra assim, desarvorada e nua no meio de mim
um ensaio de pessoa, poema sem título
guinchos de roda de moinho
como é que eu me perdoo?
como foi que me castigo?
como me doem os ossos todos?
e você de olhos bem abertos
quase um susto no momento do gozo
e eu, ah, e eu
uma pipa de linha cortada
apaixonada pelo véu do céu
bruta é a pedra que protege seu ventre
nas águas doces e frias do rio
mas a sua quietude é quase uma paz
e sua dureza é seu próprio castigo
e assim é que suplico que me perdoe
por esta dor que dói funda e inocente
mas que é vontade emergente
da nascedura da semente que rebenta, enfim.

Vigília dentro das horas

Augusta me traga um chá
com aroma das flores da cidra, um toque de hortelã pimenta
me esquente as mãos, agora já tão frias e amórficas
outrora o piano da sala me permitia
giros e rodopios pelas manhãs
mas os retratos estão fixos em mim e as horas cozinham
na lenha boa do fogão
Augusta
que horas já se vão?
que amados já se foram?
que papéis são estes espalhados sobre meu espelho?
eu que já nem me vejo mais há tanto tempo
instalou-se aqui neste peito uma delituosa solidão
um desastre estes fios tão brancos misturados ao jardim
embaralham-se em minhas pernas e perturbam-me o voo
Augusta
tem um passarinho cantando lá fora
de que cor é o seu peito
de que é feita a sua história
de onde seu ninho venta?
Augusta
e o meu chá?

Canção da boa nova

no tronco forte da pitangueira
amarrei a fita vermelha pra você encontrar
um caminho de volta
a quem aposte que num entroncamento
entre estes galhos e os meus pensamentos
você pousa e me observa encantado
minha inocência enerva os descrentes
e meus anseios matam as heras e florescem
sou toda uma estação em promessa
e o sol me descama como à pitangueira
mas teimo frutos teimo florescências e folhas novas
teimo resultados ante a falta de chuva
porque todo caminho que leva também traz
e mora em toda partida uma promessa de regresso
a pitangueira cansou o campo cansou a tarde cansou
mas eu não me cansarei
de um canto que retumba no meu peito
e só eu ouço
- é antes um mantra do teu nome
ao pé desta árvore plantei-me
colha, pois.

Na espera...

em tapetes de folhas andei o inverno inteiro
em orações vislumbrei o sol a cada nova investida
meu corpo dói - é difícil a subida
mas ficar estagnado nunca foi uma opção
quando as chuvas vierem meu rosto estará mais constrito
- faltam-me as flores e seus campos despudorados, é fatal
mas um aroma de romãs me cerca a mente
e promete dias ensolarados e praia branca
ontem as horas foram mais longas que de costume
e mastiquei com a intensidade dos lobos
- a voracidade, em certas horas, nos vai muito bem
um dia, vou abraçar este mar com tamanha coragem
que me faltará fôlego para vir à tona
passarei a viver então
entre as sereias e as tartarugas em extinção
despistando anzóis e homens.