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sábado, 15 de outubro de 2011

Meio copo, copo inteiro

meras considerações, planos de papel
perco tempo em conjecturações e caminhos de entremeio
- são tantas as possibilidades, mas olho reto
e isto encurta o campo de visão.
a história não se renova quando temos convicções rígidas
e é sempre previsível aquele que se repete e roda num labirinto
do qual se tornou prisioneiro.
é perigoso demais se apossar de uma verdade inventada.
as velhas ideias são como filhos que não cresceram:
a promessa não foi cumprida até o fim.
por que nossa inflexibilidade diante do novo,
do desafiador, da renovação, do que chamamos
diferente?
porque temos medo - medo do que não se vê
atrás da porta, debaixo da cama, lá na esquina,
na frente do espelho, só, no banheiro.
a maioria desses medos jamais terão alguma razão
mas eles são capazes de nos fazer esgotar
uma vida inteira.

Idas e voltas

jamais pude crer em despedidas:
quando se enterra nalgum lugar o coração
ele cria veios de ferro e crava a carne sem dó.
de que vale levantar o peso do corpo e sair,
sem dar-se ao trabalho do adeus? ou dar-se?
porque jamais se vai muito longe - basta uma lembrança,
um cheiro familiar, uma saudosa canção (que, convenhamos,
sempre toca na hora errada!)
e pronto! cá de novo estamos nós, arraigados
às fotos, aos momentos, aos móveis, aos filmes
virgem santa! nunca se vai longe demais.
para partir é preciso concessões, permissões aliadas
à vontade, à dor, à solidão
de se ver só, tão só, que sucumbe ante nós a multidão
e o mundo se torna um deserto de amor e oportunidades.
nunca se vai muito longe, quando o assunto
é coisa de coração.

Jasmine

trazia sobre o peito o peso de uma vida toda
afogada
a certeza de que dias melhores não viriam - não saberia
o que fazer com eles, então, que não viessem.
não haveria tempero, colorações, formas
para ajeitar-se com aquilo, aquela criatura pachorrenta
em se transformara...quando isso, meu Deus?
de desamor em desamor alargou fronteiras movediças e vãs.
agora...agora era a época das grandes migrações,
das revoadas distantes de seu coração, este estrangeiro
que já há muito lhe falava num idioma morto.
e ela naufragaria, enredada em ilusões pueris e cantadas baratas
porque comia sonhos e digeria abandonos
com assombrosa facilidade.

A carta

não costumo escrever cartas - faltam-me paciência e boa caligrafia.
imagino que cartas devam ser como mapas astrais: reveladoras e comoventes
ou que tragam ainda o presente de uma notícia que comova, que alarde,
que retenha a alma, ainda que por breves instantes, no meio do salto,
na beirada da vida, na ponta do coração - uma seta, um esteio, um floreio.
se fosse atrever-me, perfumaria com secas lavandas e galhinhos de alecrim
e a iniciaria com uma frase bonita nascida d´algum poeta ou filósofo;
certamente, usaria um fino papel, pra dar leveza à despedida,
suavidade ao rompimento, transparência ao relato, meiguice à saudade.
suspiraria fundo a cada linha, pra secar a tremura das mãos
e os olhos - sou lacunosa e úmida ao abrir o coração
(coisas de canceriana, que se acha mãe do mundo!)
e faria uns rabiscos pelos cantos das folhas pra certificar de que era eu
(na frente de um papel, meus desenhos fogem-me ao comando).
assim, seria essa uma carta que ficaria debaixo de um travesseiro,
sobre a cômoda herdada da tia, engordurando sob uma mesa,
molhando dentro da caixa de correio exilada e gasta
- uma ilha de arrabescos e floresceres de emoções sem,
necessariamente, o acolhimento de seu destinatário.

Olhos de ver

eu vi a moça saltando no ar
dando rodopios grotescos, abrindo os braços, enlaçando nada
devorando tudo com a sofreguidão de um buraco negro.
eu vi o velho dançando uma canção inaldível, orquestrada
nalgum reduto secreto do seu coração, cantarolando para seus pés
e eles, correspondiam, fascinantes como cães fiéis: ritmavam.
eu vi a criança correndo atabalhoada entre o capim do quintal desleixado
quando adentrava num castelo inigualável, num pátio rebordado a ouro,
do seu abundante imaginário - quase sorvo sua alegria, admirando
um olhar que já não porto mais.
eu vi o homem dedilhando um violão como (é uma certeza!) jamais tocara
o corpo da mulher amada - tão sofrida entrega embaçada pela paixão.
eu vejo coisas, o tempo todo - todo o tempo
que meus olhos marejam, se assombram, se encantam,
das dores e alegrias
das paixões reinventadas, vividas em compartimentos pessoais,
explodindo na face dos que se recusam a ver.

Homenagem ao que se tem de melhor

por que não podemos mais dar as costas pra tudo
no meio da tarde quente e ir tomar um sorvete
por que não podemos mais falar com os bichos e colar
pétalas de maria sem vergonha nas unhas pra fingir esmalte
por que você precisa ter um português impecável quando conversamos
e você tem que estar de saltos altos (é pra não sair correndo?)
por que...?
eu nunca vou saber, você nunca vai entender as perguntas
e muito menos virão respostas de todos os outros
que desfilam nas avenidas com cara de fera com o mundo
e pressa, muita pressa, que isso é sinal de ocupação
- seja lá o que isso queira dizer!
por que a gente deixa nosso melhor pra vestir uma roupa
que não nos cabe, um estilo que nos reprime, as idéias que tiveram por nós?
abortar a criança que pulsa em nós é crime.um tremendo crime.
bom, a minha tá chamando pra viver. vejo você por aí...
ou não.

Da gente dessa terra

e contam-se os dias com os grãos de feijão espalhados sobre a mesa
catados com esmero pra evitar pedrinha,
lavados pelas mãos grossas e ressequidas da diária lida,
cozidos na pesada panela que se atarraca sobre o férreo fogão.
lá fora a tarde geme um sofrido chamado para que voltem aos galhos os passarinhos
enquanto na boca arde e sibila o cigarro de palha reascendido.
na domingueira pelo estradão acompanham cão e crianças,
indo à reza na capelinha encardida de poeira e vida gasta, cor do capoeirão.
à enxada tosca, a terra ruge ao ser fendida, oferecendo ao amado
um ventre avermelhado com promessa de semente boa: laranja, café, mandioca
e compassadamente rumina o boi o tédio do pasto extenso e perdido pelos montes além
- além dos homens sem certidão de nascimento, sem lápide pra cova, sem carteira
de dinheiro, de trabalho, de identidade
que este mundo se espraia pra depois da realidade em que imersos
dormimos - todos nós.

Perdas e ganhos

eu perdi a hora, o pé da história, a chamada
eu perdi a estrada certa, eu perdi o óculos na banca de jornais
eu perdi o fôlego ao me afogar em lágrimas, eu perdi a página do livro
perdi a noção do perigo quando me apaixonei, perdi a linha na fila
eu perdi a hora do dentista, perdi a dica da culinarista na tv
perdi o bom senso diante da violência, perdi a paciência com gente medíocre
perdi a calma no trânsito, perdi o celular no táxi
e mais o fio da meada, o final daquela piada, o resto do filme
depois foi a vez de perder
o grande amor da minha vida e todas as outras perdas
passaram a não significar nada.

Quando o vazio fala

todas aquelas travessas sobre a mesa e o silêncio
dorme alguém sobre o sofá, em silêncio
os corredores do prédio acusam a ausência da vassoura
nos ajuntamentos de cantos empoeirados, também em profuso silêncio.
nenhuma alma deveria saboraear, que não por escolha, a solidão
- uma solidão de uma concretude cruel e pesadíssima,
tão velha quanta a noite, tão profunda quanto a mais profunda memória.
mesmos os passos de quem vive só se incomodam com o eco
buscando, na incompreensão desta hora, fuga em silêncios,
silêncios que rugem como feras acuadas e têm olhos vazados.
a janela não vê a rua - vê o vazio onde as ausências colecionadas
instalaram um painel - de silêncios.

A nossa música

já nas primeiras notas, adivinhei a canção:
uma história foi recontada, lindamente, diante de meus olhos
agora já cerrados pra intensificar as lembranças.
meu coração se soltou de meu abraço e levitou, desafiadoramente:
eu sabia aquela letra de cor, cada palavra era minha
(um dia, não sei mais quando, foi nossa)
e diante daquela gente toda do ponto de ônibus, cantei
pra mim você de novo, reencontrado
numa canção que foi feita pra nós (ninguém me convence diferente!)
e o tempo se abriu generosamente pra voltarmos ali, no nosso momento
dentro da nossa canção, egoisticamente atentos
a nós. nada me vem de dorido ou ausente - apenas
essa vontade de cantar.

Cumplicidade

eu já estive em seu lugar, por muitas vezes...
já chorei baldes sozinha, já fiquei sentada no chão da cozinha, ou debaixo do chuveiro
ruminando preocupações.
eu já perdi gente que amava e rasguei fotos pra tentar depois colar,
eu já bati o telefone e me indignei com minha falta de controle.
já atravessei a rua pra não olhar de frente um acidente
e saber que podia ser eu ou qualquer um dos meus afetos.
eu morri de medo de escutar que me dispensavam - mas ouvi.
já pensei em sumir, mas isso é fisica e logicamente inviável
e quis mudar de casa por pavor de tomar o mesmo ônibus que ele(a).
eu já estive em seu lugar observando um berço, um parque cheio de gente,
um rio escuro, um dia ensolarado e muito quente,
até mesmo à bordo de um navio, de um avião, de um trem
sem saber se eu queria, verdadeiramente, chegar para onde estava indo.
é, eu já estive em seu lugar quando o coração parte e você jura que é a morte
mas, como em tudo o mais que citei antes, é só mais um momento
onde todos nós, nesta vida, um dia, nos reconheceremos.

Vestígio

eu já disse pra você que guardei aquela florzinha seca
dentro do meu livro de poesias do Drumond?
outro dia eu chorei por ela, mas sentia por nós.
as cores se vão, nos cenários rotineiros
e quadros diferentes se erguem entre nossas salas íntimas:
mesmo os espaços se refazem, por si só, ao longo dos acontecimentos
- hora há compartimento pra tudo, hora não cabe mais nada e se pensa em explodir.
a conveniência das emoções lhes dá uma elasticidade questionável.
também suponho que você ainda possa ter aquele amuleto,
um cordão meu que você me tomou e eu até que achei divertido
(talvez não. correntes são partidas todos os dias)
porém a verdade é a mesma, aquela
que ficou retida lá trás, onde não retornaremos
suspensa entre os núcleos existenciais, seu e meu,
num relicário de um nicho do tempo.
é uma espera longa, angustiada
café e cigarro se sobrepõe aos pensamentos, brevemente.
mas não o bastante. a luz da rua cansa. o telefone mudo cansa.
viver cansa, de vez em quando.
vinho: na temperatura ambiente - eu,cá entre nós, prefiro bem gelado
a comida descansa sobre temperos afrodisíacos
(tolice - afrodisíaco é o desejo de amar)
tudo que passa disso é tempo que não volta mais.
é assim que me deito entre as palavras - sem vírgula
sem simetria, sem cuidados.
é só assim que sei dizer de mim, sem medir muito
porque a espontaneidade pode ser educada, mas não maquiada.
bem vindos ao palco: aqui, todos nos expomos
papéis decorados, alguns de nós até convencem, outros não.
não sobra muito tempo para ensaios: a vida pega no improviso
e o final feliz é ignorado mesmo pelos melhores do ramo.

domingo, 2 de outubro de 2011

as vigílias não cessam as cobranças não param os engôdos não acabam - gira a roda sem volta cada volta é um estrondo: a vida constrói seus próprios palcos.
Não espere por mim - não me aguarde no início da noite, num fim fresco de tarde não, vá caminhar pelas ruas do bairro e contar as crianças no parquinho vá ver dias de sol e tomar chuva na boca vá - não me aguarde que a vida hoje convidou você à sair...
coloca-se cada palavra sobre a bandeja como quem colhe botões de rosas, aspirando a dádiva da gratuidade do perfume porém, sentindo-se grotesco e desajeitado para manipular a beleza. foi isso que perdemos, num dia qualquer, desavisadamente: a capacidade da delicadeza gerada dos gestos, outrora angelicais.
é complexo demais falar destas coisas todas, entulhadas aqui pela minha retórica mesmo o reflexo fica perplexo diante de minhas deformidades da alma - escondo-as, com a habilidade de um bom ilusionista! mascaro preconceitos, maquio defeitos, distorço conceitos. afinal, cada um de nós desempenha seus papéis como pode e luta com sua fera pessoal a cada passo: o que mora atrás do coração humano? quantos teriam coragem de encarar sua própria nudez...?