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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

desfalque

sopro esta canção aos seus ouvidos enquanto sorrio reclusa em mim
e adivinho, sem fitar seus olhos, que eles marejaram por um instante.
nem preciso segurar suas mãos para sabê-las frias: está tenso e denso
dentro e em volta de nós dois.
a armadilha foi feita de palavras, cruel material que não se desfaz nem no tempo
e o enrodilhamento se deu, entrangulando sem piedade o desavisado coração.
jamais se irá de você esta minha imagem - dentro das horas sou uma espera
doce, amarga, atenta e instável.
(imito a vida, nesta jocosa maneira de existir, velozmente, por aqui).
os pássaros abandonaram você, nesta madrugada sem nuvens e sem sons
e eu estou perto demais para que você identifique esta dor
- é assim que acontecem as despedidas e as chegadas bruscas: a gente nem percebe
e se apaixonou. ou partiu sem começar.
vou lhe deixar meus braços em volta do seu pescoço e este calor
que eu já partilhei com gente demais pelas rotas da minha história.
mas que é sempre calor, isso não se finge ou se produz artificialmente.
no mais, aguarde uma carta, um aviso, uma foto (quem sabe!)
porque já não tenho mais forças para me despedir pessoalmente
- a covardia é uma benesse para momentos como esse
e para gente como eu.

carnevale

não vou facilitar as coisas pra você - de novo não.
vou sair fazendo alarde, vou postar um alarme em cada esquina, vou colorir o muro,
vou dançar a música que só eu ouço, vou fazer um mega esforço pra não chorar
- ao contrário! vou gargalhar bem alto, numa espécie de surto de dor e loucura,
bem ao gosto dos moralistas e hipócritas que se pendurarão nas janelas pra me ver passar.
vestirei púrpura e pintarei a boca que você negou, marcarei de tatuagens mórbidas
um corpo que você navalhou com indiferenças e grandes abandonos.
eu serei a autora de mim mesma, desta vez, sem parcerias ou trocas,
serei a poesia que encarnou e saiu jorrando pelas cantoneiras e sacadas,
incomodando seu sono, perturbando sua rota, desfazendo seus marcos seguros.
serei alada - alma desperta ainda que lesionada, sofrida, violada
pelo descaso com as coisas delicadas e raras.
percebo-me tão translúcida, tão opaca - isso não fica assim:
retomarei, em mim, a gritante orgia das cores e formas, em fantasiosas alegorias
do que, um dia, eu desejei pra mim e larguei, em meio à avenida da minha própria vida.
trarei festa de novo nos meus olhos e serei eu, desmascarada, o estandarte dos sobreviventes.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

caleidoscópio

não me observe tão de perto - eu me acanho.
perto demais e você enxergará as ranhuras da minhas pele
- já não sou tão jovem
as cicatrizes fundas do meu coração de andanças
- já vivi meus amores tortos e doces
a expressão cansada dos meus olhos, um tanto baços
- já ventou muito aqui, dentro destas órbitas.
se afaste um pouco - meu hálito é acre
das coisas que me fizeram engolir à força.
fique de lado, assim, observador indireto
para que meus gestos, por vezes largos, não o tirem do trilho.
tenho mais brilho vista a uma certa lonjura
- como as estrelas, que mesmo mortas, luzem para os desavisados.
além disso, meu caro, a minha palavra, a esta distância, corta.

ato de fé

o amor é minha tenda. meu refúgio no meio da tormenta.
onde se apascenta minha alma. onde se calam meus anseios. onde durmo.
só onde repousa o amor eu durmo. a pulsação se normaliza e possibilita sonhos.
por isso fiz do amor o meu abrigo, o meu celeiro, a minha despensa. afinal, além de abrigar,
me alimenta.
sei que por vezes eu o traio - confundo-o com outros sentimentos menores
e pulo do precipício. neste momento, o amor sofre comigo e até agonizamos.
mas, imortais que somos, nos curamos entre nós. e assim seguimos,
peregrinos destas paragens, as vezes, tão inóspitas. mas temos um ao outro.
e isso nos basta.

no que se crê?

o que há de mais duro numa verdade é que ela faz,
de tudo o mais, uma mentira.
e a verdade que se cultivou, acalentando, por tanto tempo,
descobrimos ser menos verdade que aquela que agora obtivemos,
pela revelação de uma outra pessoa.
e enquanto a verdade dela, soberana, irradia, a nossa, coitada,
débil definha, pois meia verdade, como meia vida, é verdade nenhuma.
a verdade do outro nem sempre é a minha e isso não faz de cada uma
uma verdade menor, de menos valia. mas a verdade que se sobrepuja
a uma história mal contada, a uma ponta de fim de linha, essa sim!
não pode ser a verdade de ninguém. nem deve.
a verdade, como tudo o mais, nos serve - não é pra ser servida.
ela deve ser libertadora, enriquecedora, amiga.
se uma verdade fere, fere porque alguém
inventou uma destrutiva mentira. a verdade está inocente
neste palácio de ilusões coloridas de falsos tons.
mas nem sempre ela é a convidada mais bem vinda.
somos assim, nós, vagamente claros, vagamente certos,
vagamente verdadeiros, mesmo frente aos nossos espelhos.

identificaçào

neste sem fronteiras do meu coração, perco nós dois
numa emoção que por vezes não é minha - é de outra banda da alma.
são graves espaços, de paisagens por vezes amenas, por vezes inóspitas:
cabem em nós a doçura das águas e os cálidos espinhos das rosas.
tão diferentes aos nossos olhos perfilam-se as gentes, os bosques, os desertos
e a cobertura das estrelas acolhe seus desejos de conquista e meus anseios de mulher.
seu perfil me enobrece a afetividade que tenho por meninos e sua altivez
e, por minha vez, ofereço a você um colo manso de mãe.
por certo, nos encontramos e desencontramos, lado à lado, frente à frente,
nestes campos vastos da existência, ora aliados, ora confrontantes,
para afinal, amantes, sublimarmos nossa aliança.
a dança da vida é contínua, é lasciva, é contagiante.
adiante, seguimos. nem sempre em paz, nem sempre em guerra.

depois dos temporais

era para eu esperar...não era?
a dança dos meses, a sucessão das horas, a passagem das nuvens,
a lucidez dos apaixonados, o desfile dos blocos,o crescimento das crianças, a volta da noite,
a luz da rua acender e apagar, acender e apagar.
era para eu acreditar...não era?
no fogo dos olhos, no gosto da fruta, na maturidade dos homens,
na paz, na força dos braços, no apoio dos amigos, no silêncio.
que deveria orar e orar e orar.
era para eu observar...não era?
o desabrochar das flores, a expressão do rosto dos perdidos, o encantamento
de mares, de céus, de barrigas de ventre cheio,
os ninhos, os nichos, os sonhos alheios e aleatórios.
e você...depois de tudo o mais, não veio.

lápide

aqui jaz o meu coração - um sem nome de atos heróicos cometeu.
traz em sua face inúmeras cicatrizes honradas;
cravado em seu seio uma adaga, entre outras farpas e afins,
e ainda assim suportou bem as intempéries.
aqui, agora, buscará o repouso que lhe foi negado em vida - e disso participei.
estendido num espaço tão menor do que lhe faria juz, não reclamará:
é um humano coração - se contrai e se dilata segundo a necessidade da hora.
em suas mãos ainda abriga, dedos cravados sobre elas, recordações adocicadas,
fotos gastas, escritas reprimidas, flores insólitas.
viu mais do que supunha. acreditou em fadas, amigos, despedidas e chegadas,
portos salvadores, luzes milagrosas, palavras fáceis.
e por certo provou do cálice amargo da saudade, atravessando noites sozinho.
suturou ferimentos graves, careceu de alguma compreensão que fosse alívio,
conheceu outros corações - menos ou mais afortunados, mas igualmente nobres.
não leva arrependimento ou saudade - isso é que não!
- pendência não constava de seu vocabulário.
não era santo, bem o sabemos, não era mau tão pouco;
era o que veio ser, acredito.
parece até que só dormita, tão natural e sereno, tão menino ainda...
mesmo agora, inspira-me um certo pesar deixá-lo.
porém, a vida continuará em mim e, ironicamente, sobreviverei a ele.
não há homenagens aqui; só a assertiva de uma missão bem cumprida.

alarme

chame por mim - em voz alta, se assim necessita,
em voz baixa e grave, com a sensualidade que lhe apetece,
de dentro do escuro da sua alma, onde luz não lumia,
debaixo da árvore do jardim, com pássaros à volta,
do fundo do poço mais fundo, imerso em densas águas,
do alto do muro do vizinho, chocando tudo e todos,
no meio da praça, no meio da rua, no meio de mim
chame, chame por mim - para abrir a garrafa de vinho,
pra prantear um luto tão só seu, pra clarear o caminho
ou só para não percorrer o caminho só.
chame por mim quando sentir que a garganta sofrerá um nó,
que o peito apertou-se tanto que reduziu o espaço do coração,
que as pernas se recusam ao próximo passo,
que as mãos oscilam, vacilam, tremulam para o abraço.
chame por mim no enlace da vida com a morte, de tal sorte,
que seja como for, chegarei até você - eu o ouvirei - apenas chame.

apaixonamento

é sempre primavera, aos seus pés, como que em adorada devoção, pecaminosa e falha.
é sempre um dia de sol quando há seu riso por detrás das cobertas, por cima das horas,
sorvido com café e preguiça de estar.
um sol que me vence o torpor de enfrentar a vida e me sacia, lentamente, a alma.
é sempre assim, quando você traqueja por perto: um cheiro doce, uma fome boa,
um motivo a mais para retardar a hora de sair para trabalhar ou qualquer outra coisa.
você gravita meus mundo com absoluta segurança dos que reinam sós, ostentando seu orgulho
(e sua sabença de que este reinado lhe foi concedido sem condições).
e até a minha música preferida fez-se nossa, pelo seu querer.
e até a minha comida preferida agora é outra, para o seu desfrute.
nada é alto demais, pequeno demais, forte ou fraco o bastante:
tudo está sustento no instante da sua estadia entre meus braços.
as estações nascem e morrem como este sol que caminha pelo espaço deste céu
dentro do seu olho, pelo gosto do seu cheiro, pela cor da sua pele.
este é o tempo - relativo como cabe a cada um de nós.

por hábito

é força do hábito me virar à noite na cama, tateando o espaço:
um espaço bem grande, bem frio, bem seco - ando pelos cobertores,
alva fronha que me causa náuseas e esta insônia - estou em território estrangeiro.
como também o é confundir meus horários e tomar café insosso,
abrir a torneira da banheira e mergulhar em cenas e estratagemas crus.
é força do hábito tagarelar em voz alta pra estancar o jorro contínuo de solidão,
cantar sem voz, estrangular a emoção mal nascida, apanhada de surpresa.
quando os olhos se esquecem de sua real função e vítreos calam,
calam para tudo a seu redor e para novas perpectivas. apenas morrem
de uma morte sem dor, sem data, sem alardes.
quando os braços são longos demais e ainda assim não alcançam jamais.
quando os dias são curtos para comportar tanto amargo nas entranhas,
tanta saliva espessa, tanta hora estéril, tanto sonho abortado pelo chão.
é força do hábito continuar respirando, comendo, dormindo e acordando,
nesta imensa vida oca e desprovida de tons.

falta de ar

é branco, é cal, é puro e poroso o osso
que verga no gesto desesperado para segurar no ar
o meu espasmo - o meu corpo se contraiu como uma mola retesada.
uma chuva bruta desabou agorinha mesmo, ali, dentro da minha calma
e agora assisto aos temporais.
é branca, é sal, é espessa e densa a espuma
que abunda de minha boca na palavra que descoloriu todos os meus dias:
ruptura. soou como se um martelo tivesse atingido a nuca,
ou se do nada o céu despencasse, numa tarde sem sol.
tola a vaidade que me prendeu ao meu inútil ego,
tola vaidade...menina de verdades inventadas, se alimentando de quadros
apenas mentais, apenas sazonais, apenas água destes hediondos temporais
em que minha alma, pobre criatura de olhos arregalados, se afoga.
é escuro, é noturno, é maculado e pesado o inoportuno
estar vivenciando tanto pouco amor.

amando amar

o meu grande amor não era afinal, tão grande assim
- era apenas um menino, que trazia nos seus olhos o que eu veria em mim
num futuro não muito distante:
a capacidade de seduzir e deixar-se levar pelas mazelas do coração.
o meu grande amor era um ser humano, limitado, tacanho, sonhador
como bem me cabia. A fantasia de ser gostada, de ser amparada contra a dor,
contra a zombaria das meninas que eram já namoradas, confortava.
portanto, não havia mais o que exigir além desta situação
de namorada que tinha quem lhe amparasse, timidamente, a mão.
o meu grande amor gostava, como eu, de mar e de maçã, de poesia
e da alegria de não ter aula no sábado. ele via nosso futuro num fundo de garrafa
e eu achava muita graça em seu ar sério quando dizia que iria ser doutor.
meu grande amor nunca me levou ao cinema, nunca lanchou comigo no Mac Donald's
nunca foi comigo à beira mar. mas viajamos por países espetaculares, em jatos prata,
conhecemos cachoeiras incríveis, falamos muitas línguas, compramos casas,
tomando sorvete com calda à vontade e voltando pra casa com o raiar do sol.
hoje, o meu grande amor mudou de nome, de meta, de rosto, de expectativa
diante das sérias solicitações que a vida, implacável, faz a gente.
mas nunca será indiferente ao meu coração aquele menino, que numa brecha de tempo,
talvez o melhor tempo pra se viver acordado, foi o meu grande amor.

pertences pessoais

eu pertenço a uma história que você contou ao seu melhor amigo
e depois se esqueceu de como tinha me inventado.
eu pertenço a um passado lavado do seu corpo, a uma foto perdida na bagunça de uma caixa,
a um pedaço de papel de presente que você usa, hoje em dia, pra forrar seu armário.
eu pertenço a um plano invertido na sua vida - uma faceta da sua saudade destonada.
pertenço a um tempo da sua força de se agarrar a um amor que era pra sempre,
sem saber, realmente, do que você então falava.
me pertencem nossas idas e vindas sobre nós mesmos, colonizando espaços um do outro,
desenhando projetos com o dedo no ar.
me pertencem seu disco da Bethânia (é, não devolvi),
suas cartas onde você copiou poemas pra mim do Raimundo Rodrigues, um poster,
uma receita de um doce bom que a sua mãe fazia quando eu me materializava por lá
(que eu, lhe confesso, nunca tentei reproduzir).
nos pertence uma memória guarnecida de ternura e mútuo respeito,
um direito conquistado de não tocarmos neste assunto quando nos atropelamos por aí,
porque, afinal, já faz bem mais que um tempo, não nos pertence mais.

paisagens

os elefantes caminham pela rota poeirenta e o sol castiga a pele,
imponente e inclemente - privilégios do sol.
sobre o primeiro dos animais, atracado em seu lombo como um carrapato chato,
um menino enegrecido de estrada entoa um mantra lento e doce.
a sonoridade de sua voz faz os olhos penderem das órbitas
como pendem as flores, estampadas ao longo deste percurso, de seus ramos
- a calma desta hora faz suspirar os mortos em suas casas de tempo.
um rio corre nalgum lugar - pode-se ouví-lo, e sua beleza está neste mistério
de água profusa que em algum ponto da terra serpenteia e se vai
(uma promessa de saciedade que dá esperança à alma para que prossiga).
da pele do menino também um rio transborda, vagaroso e grosso,
suavizando a dor do animal que se esforça para atravessar mais um dia.
o menino é tão leve, a tarde é leve, mas a vida...ah! a vida pesa
aquilatando a respiração das coisas dentro das horas,
sob o sol.

é breve, é leve, é partida

eu tenho cá, dentro deste meu peito, esta fome de ser mulher,
este sempre presente receio de que o tempo me passe a perna
e por algum malfadado descuido, algum sinistro descaso, um cochilo
eu me veja diante de mim sem possibilidade de remendos ou suturas:
é que é desse jeito, a vida escoa sorrateira e permanentemente e de repente
já é hora de sair do palco - mesmo as luzes se apagaram, e você,
ora, você não viu - conta de mercado, aluguel, pagar o estacionamento,
cimentos que proibem voos e delícias, como a carícia de cada dia.
ontem eu vi meninas que já não sou, rindo de coisas que ando achando tolas,
olhando pra todo mundo como se só elas luzissem (mas bem que luziam) e
num susto, num susto mesmo! tive pena por mim - a minha menina
jaz, enjaulada, na mulher adulta que lhe imponho, ameaçadoramente,
afastando-lhe os cabelos dos olhos em rijos pregadores que domam-lhe as mechas,
na saia na medida certa, no botão mais alto, no rosto mais trancado
- onde eu flutuava, agora piso duro e compassado.
nada contra a maturidade que exibe, com seu mérito, uma sabedoria do viver
- apenas o medo desse viver não ser, exatamente, vida.

lições de minha nona

eu trouxe minha avó morta no peito quando a vi pela vez derradeira.
trouxe aquela mulher de aço diluída em areia e memória.
nem pó da mulher altiva, forte, formosa e guerreira, que fez o mundo a engolir.
trouxe minha avó numa tarde em que o céu despencava numa chuvarada
que lavava as ruas, as favelas, os bancos da praça e toda, absolutamente toda
a minha desmembrada alegria - foi quando descobri que a alma sangra.
trouxe-a muda de suas músicas alemãs, paralisada nas suas idas ao quintal,
hirta em seus braços que rachavam lenha e cercavam nossos corpos.
eu trouxe a minha avó, no auge de seus 92 anos,
corada, briguenta,suada, sorvendo a vitalidade de tudo que pudesse tocar e produzir
apenas mortal.
me enterrei aos cacos ao longo de dias contados nas lágrimas, com ela.
briguei com a fé, com a crença nos homens, com a seiva da vida que amargou
de repente, quando a vi sendo levada como ela nunca deveria ter partido.
eu ainda a trago - mas ela jamais me perdoaria se eu a carregasse,
muito menos, assim; trago-a como ela foi
- mãe, mulher, doceira, artesã, amante, alfabetizadora, tia, avó, filha.
rica demais, plena demais, viva demais, pra ser reduzida a um rasgo de dor.
ela me ensinou mais na morte do que já ensinara por toda uma vida.

chuvas de verão

certo é que virão as grandes enxurradas envoltas em verão
e as sombrinhas, aceleradas e confusas, quedar-se-ão danificadas entre transeuntes.
rios cheios de energia se enervarão com as cidades e rugirão,
feras que dormitavam em meigos leitos,
derrubando fronteiras e retomando as terras dos impotentes observadores.
calam-se os passarinhos (onde se refugiam os passarinhos?) e os cães se vão,
enquanto crianças olham o céu num misto de admiração e puro horror, e tampam os ouvidos
buscando, sem querer ocultar apenas os olhos, o refúgio em suas mães.
mulheres esticam as mãos como se medissem a densidade da água entre seus frágeis dedos,
porém se mostram impiedosas as chuvas com as rosas em seus galhos castigadas.
avós rezam a oração que esperançosa tenta calar o céu e fazer dormir dentro do escuro
- até a luz se retrai, em pleno dia, quando adentram pelo cenário as tempestades.
o mar é um tropél de cavalos selvagens arrebentando porteiras.
as árvores se curvam como se desejassem oscular a terra em que vicejam.
depois, tudo é silêncio - as fortes rajadas de vento calaram até os anjos.

Onofra

Onofra mora num morro, lá em Niterói. Uma pessoa só, como tantas o são. Vive numa modesta casinha, de porém vasto quintal, acompanhada de suas gatas (que alguém por lá jogou, pobrezinhas! Mas conhecedor do bom e generoso coração da moradora, com certeza) e de um cachorro velho, amistoso como o são todos os cães, que responde pelo curioso nome de Samir.
Onofra enterrou um marido e não criou nenhum filho, coisa que muito lastima, mas assim o quis o Criador. Aposentada, viveu da faxina de casas de amigas, pois todos se enamoram de Onofra, com seus trejeitos de criança, rosto franco, apesar de exibir já alvos cabelos. De pequena estatura, isso só lhe acentua ainda mais os traços de menina que envelheceu sem crescer. Tem um sorriso destes raros, riso frouxo, aberto e inocente, de fazer muita gente invejar. E apego enorme às suas gatas e ao seu sempre companheiro cão.
Onofra também tem uma modesta criação de galinhas e daí advém o inusitado evento que me levou a falar dela: entre as galináceas, uma há, denominada Josefa, carijó invocada, dona de ares do pedaço, que, ao desejar botar seus ovos, tira às bicadas de seu cesto e cobertas, o pobre do Samir, indo lá fazer sua desova! E Samir, coitado, acuado e indefeso diante da invasora, refugia-se na porta da cozinha da casa, de onde observa, sentado tristemente, o domínio de seu antigo território.
Onofra conta a incomum história, enquanto, às gargalhadas, bate no chão os pequenos pés. É. Também eu já me acho enamorada dela.

(...)

pensei que tinha pernas o suficiente para fugir de você.
bem, não tenho. e pensei é claro, que tinha espaço o bastante para me comportar.
é. não posso comigo, contida em minhas fronteiras fracas e aparentes.
em você passo todas as estações à beira mar, afogada e feliz.
apenas em você minha melodia se engraça com a letra da canção.
em você morro vezes sem conta, voltando a vida com fôlego novo.
apenas com você a seta da bússola condiz com a direção correta pra mim.
em você os meus olhos enxergam com a pele, com a boca, com a respiração.
apenas com você acontecem estas coisas intrigantes e gritantes,
que não ouso negar, embora delas me envergonhe (ou mais me assustem).
você dá o tom certo na minha medida e cabe perfeitamente na minha mão.
é duro ver-se assim, tão em conforme com outro corpo, tão formatada;
mas é difícil não relevar o fato de que, quando sou com você,
sou acompanhada do melhor de mim.
e todas as vezes que acho que me reconheço,
tropeço em nós dois, de novo, por fim.

cheiro de urgência

onde fico aqui? entre duas braçadas, na água enlaçada,
quanto há de mim?
no momento do gozo, entre prazeroso e jocoso, onde eu?
no intervalo direto da respiração, quando dilato este peito
e de novo retorno ao viver, o que me cabe?
presente no instante do piscar do olho, da mudança de cores
em torno do mundo que acho que é meu,
fico como?
se me apresso os passos e diminuindo abstratamente os espaços
mais me busco que tudo ao longo da vida...onde me acho?
qual a direção correta a reta mais curta o caminho mais casto
e eu, entremeada de coisas e gentes...o que faço?
escapo de conflitos aceno às memórias coleciono inglórias conquistas
e...
num belo dia (talvez chova, talvez seja noite) me desembaraço
de mim.

uma história como tantas

Janaína rima com menina, mas já não o era. Pelo contrário. Ninguém, como ela, trazia selado no peito tanto sonho picotado, desfeito, pelas andanças cá no mundo. Órfã muito precoce, diante da sorte da vida só conviveu com o azar. A fruta mais doce lhe foi negada e a menina, coitada, era escrava da lida pesada do pai que a criou. Não houve descanso bastante para sua cabeça, nem cobertor que bastasse para debelar o frio que se instalou na estéril alma. Acostumou a não ser, a não ter e, por fim, a não querer. Até que lhe veio Ana. Ana foi a filha que o mundo lhe legou - chegou num dia assim, com cara de qualquer dia, trazida pelos braços de uma prima distante, que, errante na sua história, já não a podia cuidar. Depositou-a ali, como quem deixa no meio da estrada um fardo pesado demais e se foi, misturada às coisas das ruas e às gentes. Então, algo dentro de Janaína floriu, como uma primavera fora de época que de repente desperta e rebenta em botões. E Ana sorriu para ela, como a dizer-lhe que a vida é possibilidade infinita. Sempre.

marcos e marcas

cicatriz
ao longo de mim mesma a fina linha que demarca
o limite entre a vida e a partida - sofrido adorno
no contorno do meu corpo só - um chamariz
de minha consciência sobre minha impermanência no mundo.
cicatriz que me diz que sangro e choro, que supero e me alterno
entre lá e aqui.
a verdade abstraída de uma ferida que se fechou, que se lacrou
e me deixou persistir em meus planos e caminhos.
quase um troféu, uma costura que manteve as coisas no lugar
algo a superar, algo superado.
aquela que não vejo e por vezes é na alma que habita
orgulhosa e silente como uma condecoração que testemunha
o sobrevivente em mim - posso prosseguir
e de novo me dar ao experimento do amor que sucumbe
da amizade que se vai, da decepção que lanha como lâmina.
cicatriz rima com a vontade de me reconstruir - ponto a ponto.

é sobre nós

me fale de você - sem histórias de entremeios, sem rodeios
me fale de você despido de máscaras, me assuste, me choque, me enleve.
deixe que eu degluta, que eu discuta comigo mesma a certeza (ou não) se gosto
de você sem maquiagem, sem a roupagem da rotina habitual - só você
sem identidade codificada, sem tarja, sem promessas.
sua música preferida, aquilo que lhe faz gargalhar, se dorme de camiseta,
se compra o jornal e depois se irrita, se grita de dor, se chora escondido,
se o seu sentir é digno de alaridos ou silêncios imorais.
me dê de seus pesadelos, seus projetos, seus medos, seus ais:
me dê algo em que eu possa me ver e assim revelar você na minha passagem.
seu perfume, sua saliva, sua camisa predileta, sua palavra mais difícil, seu vício
- mas me dê de você, em sua singularidade e absurda torpeza humana.
só posso amar algo que seja além de mim, seja como for, se for amor

das falas perdidas

o que você ouve do que eu que lhe digo?
daquilo que lhe dirijo, o que você realmente escuta?
quando minha voz se estrangula na garganta e seus ouvidos emudecem
me desperta questionar: você realmente consegue me ouvir?
ou passa pelo crivo da sua descrença, da sua sabença, da sua condensada seleção
se aquilo que eu lhe digo deve chegar ou não ao seu coração?
você sabe do que lhe falo, do que lhe aceno, do lhe grito
com a pele da palavra desgarrada à força do fundo da alma,
com as mãos extenuadas, banhadas em suor, a pupila dilatada,
você tem ouvidos para isso?
ou é preciso mais que os órgãos da sua audição pra poder compreender
a fala, o calar, a interrupção do que é dito, pelo pulsar descompassado e aflito
de um sentimento que extrapola toda a minha razão
e morre mudo, seco, constrito,
sem nunca ter verdadeiramente atingido uma sua emoção.

sobre marcos e marcas

você não quer conselhos - quer minha corroboração
não peso em suas decisões e tomadas de rumo
estou apenas por perto, e de certo, você pensa em voz alta.
não lhe faz falta o que eu opino, embora assegure que sim
mas eu pressinto que aí vem uma carga de responsabilidade a mais
se eu me omito e me recuso a participar das suas idas na contramão.
você aponta como bússola, cheio de verdades infladas de vento,
de suas histórias que você mesmo inventa para justificar certezas
-suas certezas - minhas não.
e quando minha clareza perturba o ar da sua graça,
sua pirraça é ignorar - o dito e o feito
- e dar um jeito de driblar minha participação.
você não tem espaço pra mim, para os meus conceitos
não se iluda (eu não me iludo): você está tão cheio de coerências e sentidos...
cabe mais nada (nem ninguém) aí não.

na medida certa

era a hora certa, eu sentia! a oportunidade exata
se eu me descuidasse, a perderia na poeira do tempo volúvel e instável
pra que me desestabilizar? de que valeria?! melhor ser cru e direta
quase ácida - olhos firmes, mãos estáticas e fala lenta, pausada, serena:
- não.
isso. tá dito. enrolando a língua na saliva grossa demais pra descer à seco.
"não", ressou estranho até nos meus próprios ouvidos e me senti em frente às comportas
à beira do desastre, debaixo de um carro saido de não sei onde.
você nem piscou - acredito que levou um tempo para decodificar o signo
e só pela expressão da minha cara é que tudo começou a fazer algum sentido.
"não? como assim, não?" ora, assim, com três letras e acento, nasalado, só.
muito só.
e as lágrimas atrapalharam tudo, porque lavaram a máscara toda, uma borradeira,
um enxame de emoções carcomidas, indigestas, atabalhoadas e comprimidas
por tempo demais, meu Deus! tempo demais pra sair civilizado assim.
- não. e precisou, eu repito. já desmanchada como a borra de café,
a tela embaçada de óleo com água, a mancha na toalha perfeita.
mas sem deixar de ser um não (atrasado, é verdade, feinho, tadinho!)
mas como só um não pode ser: forte e definitivo.

sobre nós (é sempre sobre nós)

não é verdade que eu superei; aliás, jamais menti sobre isso.
menti sobre poder lidar com isso, menti sobre prosseguir sem grandes efeitos
ou sendo razoável e centrada - nada mais seria o mesmo.
não é verdade que sou forte e isso me faz objeto de sua admiração;
equivocou-se ao virar a página antes do desfecho - não sou
(e não mereço) um objeto do que quer que seja.
sou só eu e minhas mazelas, minhas trsitezas brandas, meu silêncio nobre.
sou só eu e meus caminhos sem roteiro, meu céu sem cruzeiro do sul,
meu erro e acerto, lados da mesma moeda.
sou eu e meus discos de música cafona, minha saia preferida, meus brincos hippies.
eu
e minhas ascensões memoráveis e inesquecíveis quedas.
uma mulher. é. uma mulher.

dos justos e dos nobres

quero dormir o sono dos abençoados - imagino nuvens brancas sobre mim
um sono que vai de encontro ao meu desejo de absolvição (sei que não a mereço)
quero um sono sem fronteiras dentro de mim mesma, um sono de criança - quase um desmaio
mas espero um despertar que a isso se aquilate: úmido de frescas manhãs, novas manhãs
onde terei me perdoado pelo fardo imenso de ter sido eu nestas terras.
quero dormir aquele sono de cinderela, em meio aos espinhos para que me esqueçam
- nada de príncipes, que já não posso com pesadelos! só sono, faça-me o favor.
ah, bem que me é devido um sono dos mortais que tentam abdicar das guerras, até das pessoais
sono sem cercas, de todas as cores, para todos os tamanhos de sonhos que me alegrem.
e eu escolheria a hora de acordar - não o relógio, o celular, ou os outros!
um sono em que minha divindade me acolhesse e me reconhecesse melhor, mais iluminada,
mais livre do fardo de acordar, enfim.

dos atos de Luz

meu querido, não há salvador da pátria
não há herói de rubra capa e extraordinários poderes
não há raios verdes mirabolantes, "ets" do bem, luz incógnita benfazeja
não há mulheres com super poderes, homens de aço.
meu querido não haverá descendo do céu uma nave redentora
uma alvorada libertadora indício de novos tempos
um sol duplicado no firmamento, um rasgo na abóboda terrestre
de onde anjos, em êxtase supremo descerão braços abertos
e todos os seres humanos despertarão de seus ódios e adotarão o Amor...
não.
mas há a sua vontade e a minha, as nossas lucidez e responsabilidade.
meus braços,suas pernas, nossas possibilidades de risos e olhares redentores.
nossa capacidade incomensurável para a misericórdia, para a lida,
a espada da justiça e da igualdade a ser erguida por nossas mãos
- não porque devemos, mas porque queremos ser melhores
e dar ao nosso outro o mesmo do nosso próprio pão.
não precisamos de heróis, meu querido: somos nós a nossa salvação
ou não.

veritas

e quando abro aquele livro abandonado há tanto
com o que me deparo? um seu retrato grudado no papel ressecado.
que perigo andar pelas bordas da vida assim,
com a metade da vara, na ponta dos pés para não acordar
a si mesmo, seus holocausticos desejos, seu passado embrulhado pra presente.
é...ficar tão machucado que não se sente a própria pele sobre a carne
- o que se pressente é o desfalecer, é o buraco frio, é o soluço estrangulado.
mas a gente teima em aprender da maneira mais retumbante,
mais alarmante e que sempre marca de grosseira forma
- viver é colecionar quelóides...
sempre ao seu lado o sentimento de demora pra tudo acontecer
para depois choramingar que foi tão rápido que nem se viu.
por que eu deveria perdoar você e as coisas que você largou na minha alma?
sabe o que foi pior? tudo que você deixou eu nem sequer tenho como devolver.
o amor tem gosto de algodão doce: some numa colorida nuvem e deixa enjoo!
(eu só estou disfarçando, não é sério não, viu?)

é porque é assim

lamento, mas eu vou deixar você por agora e vou saltar
nesta grande onda prata que invadiu a praia e me convidou pra sair de mim
e descobrir a dimensão deste azul brindado de sol e sal.
eu peço licença mas a vida se estendeu de tal maneira por trás dos meus olhos
e isso me reabriu um apetite de gozar, de sonhar, de ser alada.
acredite - nada disso foi programado! por isso a urgência de absorver
este verde, este tapete de veludo rosáceo no fim da tarde, esta gente multicolorida
ilustramente desconhecida, (pelo menos por hoje, mas, quem sabe)
que atravessa sem licença o meu caminho e me atropela de histórias originais.
eu estou borbulhando em sangue, versos e musicalidade
e a verdade é que tudo passa, voo passarinho, teia que se enlaça sobre si mesma
e se rompe, sem alarido, sem prévio aviso, sem convenientes despedidas ou elegantes desculpas.
ai, me perdoa! que urgência boa de acreditar em Ano Novo, em reprogramar-se, em projetos.
que urgência de mim, só ou acompanhada, mas totalmente voltada para a Vida.

uma nova temporada

queria que meu desjejum tivesse sido o sumo da sua boca,
a carne sonolenta ainda, orvalhada em sonho e preguiça.
eu começaria logo um discurso ( quase monólogo) sobre como os seus olhos,
pela manhã, fogem da luz e viram espectros da minha silueta.
eu poderia me estender um pouco mais, adiando a hora de sair pela porta,
ainda cheirando a nós.
ou ainda, com aquele sabor de medo de não reencontrar você aqui, ao meu retorno.
em volta de mim as coisas confabulam sobre o que vivi neste espaço,
uma intrínseca conversa de dois corpos, mas de poucas falas reais.
meu corpo me parece estranho, a mim, que há tanto o carrego por aí
e mesmo meu andar me trai, num balanço de uma melodia interna e doce.
eu queria que você fosse um presente mais concreto, uma certeza mais áspera
porque eu a saberia duradoura.
o ano escorreu entre todos os nossos poros, choramos e odiamos amar,
vomitamos desaforos, forramos a cama para o outro se aquietar, enfim...
mas mesmo às manhãs sucedem-se as madrugadas e às chuvas o forte sol.
movimento e mudança - inconsistência, inconstância.
e eu continuo com sede.