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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

fale-me mais de você. fale-me das suas correrias pelas escolhas sem saída, das suas idas e vindas pelos sonhos que tem acordada. fale-me de seus monstros atrás das portas, quando ninguém a houve gritar, de seus altares secretos, da água que escorre noite e dia da sua boa, silenciosa e dormente. fale-me das gentes que amou, que criou, que odiou, que abandonou nas cartelas sem endereço, nas cartas rasgadas e nas rasuras de sua cara. fale-me dele, principalmente dele: ele a fazia gritar, você delirava com ele, sabia da espera, da perda, da ruptura dentro da promessa? fale-me dele! a cor dos olhos quando saia do leito, a textura da pele depois do banho, o cheiro dos cabelos, o nome pelo qual só ela a chamava...esta dor é deliciosa e substanciosa - fale-me dele, o único que nunca irá embora, que não morrerá jamais. (Bete Amorim)
meu grande amor,preciso confessar, que eu já parei, faz bem um tempo, de rezar pra você voltar. parei de falar sozinha pelos cantos e minhas unhas voltaram a crescer. parei de reler tantas folhas, tantas falhas, tantas mensagens cifradas, tantos anos. parei de pensar em você como algo que foi embora: você jamais se irá, jamais. e aprendi a respirar com isso sobre o peito. parei de provocar encontros com pessoas que talvez lhe tenham visto, falado, amado - como eu não fui capaz de faze-lo, com aquela coisa que entrega a alma, sabe? a alma é minha, perdoe. mas fiquei com a dor da dúvida de se eu fiz a escolha certa. perdoe. parei de me culpar, porque já me castiguei demais, até pra mim. parei de amar um passado bem distante de tudo agora, um alguém que você já não é, por um alguém que certamente eu não seria. eu não cabia nas suas medidas. você chegou com uma vida pronta e eu começava a achar que a minha ia decolar. parei de mergulhar em tanta água do meu olho. parei de me orgulhar de ter sobrevivido a nós dois, como se eu lhe devesse isso. apenas sou, é só o que quero, é só o que posso. sou. como eu era antes de você. e como serei depois de mim mesma. (Bete Amorim)
é um copo vazio. na minha frente, agora. é o que há. um vinho tragado no vazio de um copo que antes estava lá, na espera. e eu divago, soluço, engasgo com a própria saliva. não há alívio possível, não há consolação. eu mesma ergui esta ode ao copo que diante de mim comporta o mundo. um copo sem definição, incolor em essência, por triste coincidência, nesta hora, vazio. em mim, todas as perguntas possíveis, em mim todas as inquestionáveis resoluções, cristalizadas e foscas. eu cheia. diante deste copo. (Bete Amorim)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Não sou tão diferente de você. Eu me escondo pra chorar minhas mazelas, eu cheiro as roupas do ser amado, eu rabisco coisas no espelho embaçado do carro ou do banheiro, eu repito aquela música como um mantra. Eu queimo a língua pela ansiedade, eu sinto sede de água nenhuma, eu mastigo as horas que me fazem esperar. Não sou nada diferente de você...eu tenho pesadelos que trazem suor e medos antigos, eu revejo fotos com o interesse de sempre, eu nos vejo depois de passado tempo (nos lugares mais inusitados). Tenho pecados inconfessáveis, segredos partilhados com gente demais, vergonhas públicas, gozos primitivos. Tenho manias que me fazem rir sozinha, coleciono coisas sem saber pra quê...ou pra quem. Também eu persigo sonhos, mesmo que constituídos de matéria tão sutil. Também eu cobiço, confabulando com meus demônios internos. Também eu suplico misericórdia aos anjos pelas facetas de minha humana pequenez. As vezes, quase desisto. As vezes, quase permito. As vezes, quase sou mais. Não somos tão diferentes, mas tanto nem tão iguais. Somos o que nos tornamos, na tecitura dos dias entre nossas escolhas. Por isso, a compaixão. Por isso, o desprezo. Por isso, o insondável mundo do Amor, tantas vezes traduzido em desolação e desterro, como recompensa por nem sempre termos escolhido sermos nós. (Bete Amorim)

sábado, 11 de agosto de 2012

Perdoa se eu choro. Não planejei assim. As coisas que me devoram o fazem no silêncio de minha sala, entre meus livros, embaixo da escada. Perdoa se eu me permito tão frágil na sua presença, isso pode ser embaraçoso, desconcertante, até incômodo, é verdade..perdoa. Não há aqui a intenção de despertar comoções, só não posso contê-las, as águas, que urgem limpar meus olhos, que urgem lavar memórias, que urgem encontrar alguma nova visão no embaraçado cenário que se estende diante de mim. Eu acho que choro por outras coisas, pelas ruas secas, pelas notas sem canção, pelos bichos, pelo roçar das pernas, pelas perdas de manhãs de sol. É isso. São outras coisas, outras tantas, tantos outros. Perdoa se eu instrumentei cenas, e se eu maquiei caras, e se eu rasguei a melhor parte do seu roteiro. Mas as falas eu decorei, todas, como você arquitetou tão bem. Só os poemas sangram, dia e noite, desta hemorrágica sensação de metade. E eu ainda nem comecei os dias que me veem de frente. E eu nem observei se você já foi. E já choro! Que coisa! Perdoa. (Bete Amorim)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012



Foi no meio do dia, numa hora sem maiores significados, signos, marcações ou sentidos. Não tive sonho premonitório, não vi sinais no céu, não tinha aro na lua, não tinha coisa alguma diferenciada na seção do horóscopo no jornal. Não li nada no seu rosto na noite de ontem, não li nada no cheiro da sua pele na cama, não li nada em seus achados e perdidos sobre a mesa. Nada. Nem. Talvez o amor vá embora como um pássaro decola de um galho que, num balanço repentino, o assustou. Talvez o amor se canse de subidas, de descidas, das curvas bruscas, das freadas. Talvez o amor se enterneça por corações vazios e deixe aqueles já se acham preenchidos. Como eu vou saber? Como você me saberia? Talvez o amor seja criança demais pra tanto peso, tanto alarido, tanta enfermidade e se vá, assim, indiferente aos signos, aos sinais, aos apelos. Não há nisso nenhum grande mal, nenhuma pérfida maldade, porque tais deformidades não se afinam com o amor. Há apenas partida e fica então saudade, dentro da gaiola espaçosa de um coração que acordou, de repente, e deu falta. E então pode-se ouvir a alma soluçar. Mas que se aponte - o amor não olha pra trás. Se olhar, não é amor: é pena.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

papel




era destas coisas que se descarta num momento de raiva e desprezo pelo peso dos dias
em que se dormiu no braço do outro e que o outro era verdadeiro:
um papel com um rabisco de delicadeza. 
é uma dor quase enjoativa olhar o passado de frente. uma dor que dorme na alma e acorda latejante.
por momentos eu me irritei de tal forma comigo mesma que me quis morta.
a minha capacidade de benevolência só não a exerço comigo.
é tudo fantasia, é tudo serpentina molhada em fim de baile, é tudo confete descolorado - 
e eu sei. pior que eu sei. 
mas minha humana face pede espelho, pede maquiagem, pede alegorias.
meu coração bebe alcoolatramente suas mentiras fáceis, seus carinhos toscos, suas voltas, 
dramáticas voltas que me enlouquecem e premiam.
no meio da confusão de meus sentimentos, tão amassado e marcado quanto meu amor
o papel descartado voltava à tona no meio do lixo que eu descartava naquele dia.
e, grotescamente, quase que shakesperiana, beijei-o, lixo e dor,
beijei-o. e o coloquei entre folhas de poesia de Cecília Meireles




eu sangraria na sua canção, seria tão bonito...perderia o bom senso cada vez que me beijasse a nuca, fosse onde fosse, com e sem platéia. eu me recordaria de você com festa nos olhos e calor entre os braços. eu acertaria em cheio quando me perguntassem de que música você gosta mais, seu sorvete preferido, sua cor eleita. sua boca teria sabor, um indiscutível sabor de insaciedade. sabe, eu poria você como adorno sobre meu peito e ostentaria este amor como quem carrega um buquê de rosas rubras e frescas. eu mesma seria rubra e fresca, pra sempre. como se pode ver alguém tão além de si mesmo? como se pode ter alguém em tal reduto do coração, num altar? como se pode morrer vivo, escarlate, sem pele... 


Eu nunca sonhei. Nem de olhos fechados. A vida cuspia na minha cara todo dia, todo dia, como num verso ensaiado. E as coisas que eu pensava não iam além de tentar chegar íntegra ao dia seguinte. Eu tenho sulcos fundos na face, porque não se pode ver as pregas da minha alma. E se as mãos me denunciam a idade, a vitalidade dos olhos zomba despudoradamente do tempo que me consome. A rua me consola. Me dá algo que respirar, algo com que lidar além das paredes exatas. Por isso, não raro fujo para as calçadas e transeuntes incógnitos. A vida me deu braços firmes e ombros largos, bem largos, que de uma margem a outra não se vê. Carrego portanto um rio de arrebentações pelo corpo em uso. E sempre que me sinto dobrar, penso no capim que o vento primeiro afaga,depois roça-lhe a pele no chão, faz provar do baço da poça de água, mas ele retorna ao porte original e se agita ao sol, em glória. Já tive mais fome, até dentro das horas. Já tive mais medo, até dentro das vísceras. Agora tenho mais sorte: os dias nunca são iguais e descobri que jamais serei a mesma no próximo por de sol.Descobri sozinha, que caminhos a gente abre. 

quarta-feira, 20 de junho de 2012



A lavanda infesta o ar, como um enxame de emoções desprendidas, de repente. Não soluço, não conto tábuas, não mais. Antes era um tempo só imaginado, esperado com gosto de promessa de filho. Mas ele ficou velho e,  hoje, é este rascunho de festa que nunca acendeu as luzes. É o preço que se cobra (mas não se recebe): entregar-se. Desde então cubro o espelho com uma toalha velha e ressecada. Não preciso que me recordem esta alegoria na cara. No mais, vou quase sempre dormir. Sem sonhos. Eu morri um dia, e ninguém nunca me dissera antes que se pode morrer vezes sem conta. O problema, é que também ninguém responde, por que cargas d`água você cruelmente sobrevive e retorna. E é quando se passa a ter pousado, na cabeceira da sua cama, o medo. Vê só?! E ainda lhe diziam, ainda criança, que não existiam monstros a temer dentro do seu armário...

terça-feira, 5 de junho de 2012

Porto inseguro

Amanhã eu lhe trarei meu coração. Prometo. É arisco, sorrateiro se esgueira porque pressente meu cheiro, meu hálito, meus ais. Mas, com um tanto de paciência que me cabe, eu o arrebatarei das luas e dos varais, dos becos e das vitrines, dos dias e seus muitos sóis à pino...e o trarei! Para ensinar-lhe seu lugar, o submeterei aos caprichos de estar prostrado aos seus pés, você verá. Êh, que coração nenhum me engabela assim, se torna arredio e alado e me passa dias fora, sem desejo meu no arreio. Que eu não admito esta fuga diante das dores, não o alimentei pra isso, pra medo, pra escuro. Não. Eu o trarei, e ao deparar-se dentro destes seus olhos mirado, olhos de gula, buliçosos, ele se quedará silente e deliciado, que bem eu sei. Que meu coração andou disparatado neste mundo de meu Deus, mas agora, agora ele conhecerá ser presa e ser preso, dono de nada além do que você lhe dará, atento a cada segundo diante de si mesmo, tendo asas, mas se recusando à voar. Que este coração já foi caiado em lágrima e saudade e agora só precisa de pouso, de retornos, de um cais.

Filhas do coração

Ameaçam-me as memórias. Antes distantes, agora fazem-se senhoras de meus pensamentos todos. Falam-me de uma amiga que abraçaria. Falam-me de um amor da que beijaria, de novo, pra ter a sensação de estar mais viva. De uma casa de avó e cheiros de cozinha mágica. De um quintal com horta e pé de amora. De um armário no canto do quarto que me assombrava. Falam-me sem dar descanso. Falam-me sem piedade. Invadem meus refúgios, sem barulho, mas com forte aroma de nostalgia. Cantam minhas cantilenas de roda, meus enredos inventados, meus segredos de alcova. As memórias mais doces são sorvidas sem desgaste, mas nunca andam sós, como bem se sabe. A elas segue a saudade, incontinente e indiferente à minha provável dor. Que saudade é dor que fura alma, com espinhos disfarçados de rosa. Minhas memórias insistem em quem eu era, no que eu fiz, em quem me foi. Ouço música; elas sabem a letra. Escrevo; elas pontuam. Como; elas evocam sabores de longe. E num momento, não vejo senão o que me mostram. São criaturas que brotam da alma, não da cabeça. Por isso são tão filhas.

Derradeiro

E rumo às estrelas então ele corria, e corria, e seu nome se perdia na aflitiva indagação que me estrangulava a voz na garganta, como se um pássaro lá se debatesse. E ele olhava apenas para aquele céu, céu que já era dele desde sempre, desde tanto, desde dentro de cada noite em que ele amara aquele céu. E corria, e seus pés já não sabiam de chão, de cortes, de dores desta terra. Era apenas a busca insana e santa por aqueles céus de menino sem teto, sem identidade adquirida, sem saída diante das nossas parcas e fartas misérias. E ele corria, e aquele mesmo céu, entre debochado e curioso, o ansiava, como se fora uma noiva desperta pela paixão. Seus olhos eram incêndios dentro do escuro, seu peito arfava alto e incomodava os passarinhos sonolentos, acobertados pelas enfadonhas horas. E ele corria, carregando dedos umedecidos em contentamento e tensão, beirando a loucura das velhas solitárias, do silêncio que habita os mortos e horrores dos penhascos da alma. As estrelas? As estrelas soltavam gritinhos de alegria. E em momento algum, eu lhes prometo, em momento algum, ele voltou os olhos para ver se deixara algo importante para trás.

Primaveras sem retorno

São como as nossas flores, recorda-te? Pelo caminho até a estrada feia, as flores. E íamos em uníssono com a valsa do vento frio. Ele me fazia doer os pés - tu, ao meu coração, desarrumado. E as flores nunca faltaram sua graça em cada riso, em cada decoro, em cada foto. Fazias questão de me dizer que havia delas em mim e te agradava isso, esta delicadeza, esta leveza flor. Seriam as minhas histórias em apartados galhos secos e frágeis. Seriam as minhas memórias, nascidas da semente boa da minha ilusão. Seriam frutos, não caíssem antes das ramadas, ainda tão jovens, ainda tão promessas. Eram nossas flores, eu pensava. Mas só que eram apenas minhas, fábulas tramadas pela vontade de ser feliz, arrancadas precoce de meu coração.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Se eu fizesse a letra, você me daria o tom? Acredito que assim surgiria daqui esta música que nos bastaria, seríamos assim som e letra, porta do céu, vasculho dos infernos pessoais , entulhos humanos, arcanos...Arcanos! Isso! Arcanos...Você me daria uma canção pela qual viver e sublimar a minha humana condição? Porque tenho tanta busca lacrada nos porões da minha mente, tanto mapa de felicidade rascunhado na solidão de minha ânsia demente, papéis a cumprir (até bem projetados), mas tudo racional por demais...sequei a planta do amor por falta de tempo e excesso de zelo, tomei chá da raiz da amargura do crer-me só. Daí a urgência desta canção que me arrebatará de mim, que me salvará de meus pensamentos recorrentes, que me dará algum alento e me acolherá com uma certa misericórdia, mesmo! Então, eu pergunto de novo à você: se eu gestar a emoção, e se eu fizer a letra, e se eu parir a palavra oculta, você me faz esta canção que, finalmente, me deixará dormir o sonho dos perdoados?

segunda-feira, 21 de maio de 2012

E porque o amor me chamou e ouvi sua voz dentro do meu peito, eu já não respiro mais em falsete: completamente tomada, me alimento de alvoradas novas. E porque o amor me chamava eu deixei para trás lágrimas sem conta e tornei-me semeadora de desejos e sonhos outros. E Porque me chama o amor, eu percebo gentes que lá antes não havia e meu rosto é o rosto de qualquer homem que sonha e luta e cresce e morre. Por que me chamaria o amor,
se eu não tivesse ouvidos para ouvi-lo? Em sua sabedoria o amor vislumbra os corações que tem fome e sede de vida.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

gravidade

Não há terra o bastante para me manter no chão. Gravito em torno de mim e das coisas todas, como se fora um planeta em convulsões. Ardo sem sol. E as chuvas já me deixaram há tempos. Dentro dos dias, sigo o roteiro esperado. Dentro das horas, a rotina me come com lentidão e de forma insana. Passo por homens que não reconheço e isso não me comove ou impulsiona para eles. Somos todos estrangeiros que coabitam, cada um carregando sua bagagem incógnita, pesada, permanente. Minha ausência de gravidade é uma ponte para fora da loucura que é estar. Sonho, ainda de olhos abertos, ao longo dos fatos, das fotos, das fissuras na alma. E esta minha sensação de que vou correndo para lugar nenhum, junto deste "gado" que me cerca, é que me faz verter ainda alguma lágrima. Preciso, com inexorável urgência, resgatar a minha humanidade.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

e eu não faço por menos!

ah, eu beijei a sua boca com tanta sede, tanta angústia, tanta fúria, meu Deus
uma fúria santa, perdoável, acessível, uma fúria de sons divinais e assombrada de cores.
eu perturbei os anjos com a minha chegada brusca e tresloucada - que faria eu?
sufocada numa saudade que ia me afogar, que ia me arrebentar por dentro, como quem rompe comportas.
e eu toquei você como se não confiasse em meus olhos, toquei você com dor e força,
numa urgente necessidade de acreditar que meus dedos eram reais, que estava acordada, entende,
que eu podia abrir as pupilas, dilatá-las como os gatos fazem no escuro e você...você ainda estaria ali.
eu queria entrar em você e me refugiar na sua partida, pra ir junto sempre pra onde seus pés nos levassem.
como eu vou saber se amanhã eu estarei aqui? por que o desgraçado do amor não dá garantias?
por que se morre de tanta vida, como quem submerge em si mesmo?
e eu preciso agora beijar você de novo, que eu já cobri você inteiro com meus olhos e não bastou.
eu quero a sua alma, como eu sou egoísta! mas eu quero a sua alma.
não a eternidade, não a promessa, não o eterno enquanto dure - a sua alma!

só de passagem


amado, estou saindo. devagar, mas certa da partida, eu vou saindo.
saindo da sua cabeceira, saindo da mesa na sala de jantar, saindo pelos retratos nas paredes,
saindo.
saindo sem barulhos inconvenientes, saindo como se sai de um tubo de pasta de dentes,
saindo.
saindo do cheiro do seu cabelo, saindo pelos avessos e pelos entremeios, saindo da gaveta de meias,
saindo.
já sai antes: foi melhor por um certo tempo. mas agora eu me despeço de fora pra dentro,
entende?
apaguei as luzes, dei água fresca ao cachorro, aguei a grama, bati o portão (de novo!) no meu dedo,
saindo.
eu já sai de mim, eu me chorei por horas, eu me agarrei nas bordas do meu coração, respirei.
mas ainda assim, neste ar que veio lá do ventre, saindo.
fique bem. beijos.

depois da hora


eu guardei o papel do bombom roxinho, mas rasguei a passagem de avião - eu não volto.
as águas que cercaram o vidro tentaram me intimidar, mas você pode desistir, eu digo.
nada nesta terra me é mais mistério: conheço daninhas e torrões estéreis
e em nada me acomodo no velho sofá - meu corpo mudou desde que você o abandonou.
eu tenho regurgitado muitas histórias e todas acabam amargando, como esta bile.
precisava de outros voos, outras lembranças, saudades novas.
precisava redescobrir o gosto das frutas e das noites sem expectativas.
falando nisso, até meus sonhos adoçaram...acredita?!
meus livros estão mais calados, e é verdade que minhas linhas se acham tontas e tortas.
a devastação ainda se vê, algo maquiada com um tanto de exagero no lápis de olho.
mas eu já vi horizontes mais plúmbeos e reconheci, depois deles, manhãs.
eu não volto. mesmo porque, não sobrou nada para lhe devolver.

de paredes fechadas

as janelas permanecerão fechadas - desculpe-me, sol, meus olhos doem.
não consigo mantê-los fechados sem ver você: fecho com firmeza, quase dói,
para não perder nenhum detalhe, e as sensações que sobem como quem espana pó.
percebo minha indolência e me absolvo totalmente. posso me dar ao luxo de ficar aqui,
e reconheço meu silêncio como algo que se come frio, como a vingança - no caso, isso me enoja.
não tenho mais desculpas para dar aos amigos que me chamam pra viver. só por agora,
estou stand by, compreendam. tão vital quanto beber ou respirar. só não quero
achar a vida interessante ou bonita, neste exato momento.
renuncio, pronto! abdiquei.
volto a me revestir de lençois, volto a trancar os olhos conosco lá dentro, a sós.
e aspiro avidamente o perfume que fabrico na mente, de memória
aquele que eu sempre disse a você pra usar quando fosse me encontrar.
é nele que confio, nesta hora, para encontrá-lo, aqui, neste quarto só de mim.
resisto às demoradas despedidas e longas falas - no caso, isso me assola.
sol, volte amanhã. mas, olha, sem garantias.

da verdade das coisas


eu ensaiei algumas coisas pra dizer, mas embolou tudo na garganta (logo agora)!
me lembro que ia lhe falar das lembranças boas que eu guardarei de nós
mas meu choro desbotou totalmente as imagens, e só sobrou uma borra.
eu tinha deixado umas palavras bem bonitas de sobreaviso pra tapear seu ouvido,
só que resmungaram tanto entre si que me irritaram, então as dispensei.
sabe que mesmo algumas coisas que eu tinha lá em casa quando você evaporou
se acabaram, neste tempo que tudo desfaz, lixando a superfície, consumindo (se).
e agora eu venho aqui sem imagens, sem palavras e sem coisas e olho duro dentro de você:
o que eu aproveito desta sucatada de sentimentos e mal entendidos?
nada. nada será reciclado porque não há material a ser reaproveitado.
o constrangimento desta hora me faz lembrar dias na escola em que eu não conhecia ninguém
e tinha uma vontade enorme de sair correndo portão à fora, pra debaixo da mesa da cozinha.
que pena que é só isso que me restou pra sentir na sua frente - constrangimento.
eu tirei a roupa tantas vezes pra você, mas a alma, essa nunca ficou nua na sua presença.

estou cansada mas minhas mãos teimam: querem falar neste teclado negro.
humildemente obedeço - sufocaria neste manancial de palavras
que me abrange como um grande oceano que se esvai para a terra curta e assombrada.
sou uma ilha, uma ilha seca e dura, uma ilha daquelas que se abrange a um só olhar:
não acumulei grandes segredos, nem me preocupei em cultivar nada incomum.
todo aquele que aqui se abriga conhece várias faces de um mesmo abandono
- sou uma ilha que não foi mapeada ou ornada de chamarizes - só uma ilha,
como tantas.
tenho porém a particularidade de não ter querido mais que isso (a benção dos isolamentos).
os pássaros passam, longe, longe. de longe em longe passam também outros homens
(mal os ouço).
desta largueza entre meu eu e o mundo vão conchas, rochas, mares entre mares.
agradeço a companhia dos restolhos que bóiam e me trazem notícias de lá, este vasto horizonte.
e para quem pensa com dores na solidão, nada me é mais familiar...sou uma ilha...
lembra?

sem razão pra depois


oi, meu amor...vc está dormindo? vc está sonhando? vc está andando comigo?
andamos de mãos dadas por esta sua invasão do meu domicílio, sem anúncio de chegada,
sem direito de notificação de partida? prefiro que fique assim mesmo, de olhos fechados
(sempre espero que desta forma minha alma passe despercebida e vc não me leia...)
vc sabe que dia é hoje? hoje é agora. e depois de agora eu sei lá o que veio, sei lá ao que vim
- não que eu seja complicada, assustada de vida carregada por demais ou algo assim, mas
sempre dormi com a morte na minha cabeceira, sabia?
eu só tenho este agora pra me despedir e sair de mansinho da sua história,
como vc entrou na minha - irônico, né? compreenda, eu não vim pra ficar. não viemos.
olha, meu amor, este foi o melhor agora da minha existência: reteve nele toda a essência
de meu sentido de ser, de minha razão para estar, de minha certeza ao partir.
que vc seja confortado neste seu sonhar que eu não adivinho, nestes dias que virão.
com alguma sorte, até de olhos abertos, não terei deixado significantes lacunas.
tchau, meu amor. acorde bem.

um dia para ti


imprescindível dizer-te deste céu por demais azul.
clareou meus olhos como quem naufraga em luzes: sorri pra nada
e pra nada meu coração cantarolou até me comover, como só ele o sabe.
as passadas eram largas, descomprometidas da ritmica da prórpia vida
e meu respirar nunca me pareceu tão impessoal, uma sensação única:
por breves lapsos, não estava em mim.
cantavam - nalgum lugar, juro-te que cantavam
e percebi que estar viva dentro de um dia assim poderia ser uma benção!
logo eu que me enamoro fácil da ideia de sair daqui.
surpreso? eu estou, confesso-te francamente. mas não arrependida.
arrependida não, que eu como palavras como quem saboreia manjares
e transpiro a poesia das horas, alargadas pelo riso espontâneo
e este mar indomável que me assola as terras da alma.
dedico-te este espaço no meu pensar: espero em gozo
outro dia assim. faltando-me apenas tua face dentro desta alegoria.

pé de quê


nasceu um pé de algo verde entre o rachado do portão e a rua.
não se mostrou de princípio flor ou mato, só crescia em verde.
espichou folhinha: ninguém que adivinha se é bom ou daninha - ninguém.
guardou segredo de suas sementes e resistiu aos pasos que transpunham
a calçada, a porta de entrada, os alagados da rua.
curtiu o sol, podia-se ver! caiu de alma na chuva.
preocupei-me se esbarraria na grade e se feriria, mas não:
mais esperta que todos, driblou a morte e teimou crescer.
espichou uma galhada tímida, a princípio, mas logo debochou
e deitou tantas folhas que virou arbusto de coisa sem nome,
porém respeitada, para incompreensão absoluta do jardineiro
que não entendia, de maneira nenhuma, porque um pé de nada
tinha direito de estadia em nosso portão.
pobre jardineiro! nada nasceria mesmo naquele seco solo de seu coração.

coisa de pele


eu conheço seu cheiro. veja bem, não falo do cheiro
da sua loção de barba, do perfume que é usual, do aroma dos cabelos.
seu cheiro: uma sua digital, inconfundível quando saboreio desde longe.
sério - que seu cheiro mora embaixo da sua pele, emana de antes dos seus poros,
antes de seus olhos falarem ou sua boca mexer num arremedo de palavra.
antes vem este seu cheiro único, que me traz das cavernas de mim,
que me alumia a porta do túnel, que acorda a minha alma pra sair.
e quando saio me recebe se entranhando em mim como um presente.
seu cheiro as vezes chega doce, as vezes por demais e de repente; assusta!
e me prende sem correntes ou cordas, sem maiores preocupações ou explicações.
se apoia sobre mim como se eu fora o cais, mas eu sucumbo, admito:
só quero mais e mais e mais, como quem se embriaga de bom vinho.
sem fartar-se.

eu não tinha nada pra fazer a não ser me ferir.
portanto, vasculhei todas as nossas caixas e dispus fotos e mais fotos
numa extraordinária pilha no centro da sala. sentei-me.
e sentada, chorei. de novo. eu, que secara em mágoas enterradas a fundo.
abracei aquele ramalhete de relatos em imagens esparsas e, com todas as forças,
tudo lancei aos ares, com impulso, com raiva, expirando forte!
vi sobre mim choverem lugares de revistas, cenários de sonhos, lembranças de dor.
e sobre os espantados móveis despencaram aqueles retalhos de vida,
atos das nossas peças, sem cortinas agora. agora, sem público.
caíram sobre o tapete, álibi de tantos arroubos;
sobre o chão frio, que conheceu nossas peles tão bem;
sobre o seu sofá favorito, gasto como todo o resto desse sentimento;
sobre a arca, entre outras fotos, estas, em porta retratos, imaculadas.
caíram sobre mim, como se alguma redenção me viesse disso.
fechei os olhos e me feriram, quando me tocavam com sua presença,
com sua lembrança, sua baça configuração.
pisei-as, beijei-as, deitei-me sobre elas e ri de mim. de nós.
somos papel. menos: somos uma impressão num pedaço de papel.
e por isso se sofre. por isso, se morre um pouco, bem devagar.

coisas do amor, sabe?


antes que este dia termine pra quantas pessoas você dirá "eu te amo"?
pra quantas diria? e quem mesmo sem receber de volta nenhuma garantia
se atiraria ssim, de braços escancarados ao Amor?!
pois eu lhe asseguro, meu querido, que não outro jeito, outra forma,nada de garantias,
nenhuma mandinga, nenhum macete que lhe dê retorno para iisso que deve ser
distribuído de graça, cultivado sem reservas, tratado dentro do peito num carinho só.
e por si mesmo como planta na terra boa ele lança raízes e promessas,
ele cultiva em si mesmo fruta doce e fruta azeda, colheita farta ou ausência de flor.
Amor.
farto, feito, eter, corte, pedra, nuvem - simples assim. sem dono. sem hora. sem volta.
mas só presta se for sem fim!

das dores de um só



meu amor acobertou-me em dunas - cobriu-me de seu fino pó...
ressecou-me as entranhas com a suavidade dos ventos marinhos
e dourou-me um implacável sol, de mil estrelas.
meu amor escondeu em mim um tesouro incomensurável
e guardei por décadas minha sede de seu hálito.
vi passarem animais e dei-lhes sede e cansaço de um corpo vazio
mas que revela sua fonte mais dadivosa a quem vasculha seu ventre.
vieram as histórias contadas de boca a boca pelos viajores
e os pés que marcavam-se na brasa de meu confuso coração;
vieram as canções ungidas de solidão e desejos, que rasgam a noite
como quem de uma mulher rompe o translúcido véu.
pontes sumiram, trilhas se perderam, rotas jamais vieram a tona.
marcas mais antigas que a própria lembrança do tempo
ornaram-me a fronte.
que é a morte, quando se é deserto?
que é a vida, quando se desconhecem oásis?
e meu amor, lavado em brumas e tempestades frias
jamais voltou para buscar-me de meu destino de seca.
ardo. clamo. choro.
mas nada disso se vê ou se ouve entre as areias.

sinais


me estenda na janela a bandeira branca e acene com os olhos
- eu saberei como voltar.
não fique esperando nas nuvens que cruzam espelhos ou debaixo da sombra
- eu saberei que é preciso voltar.
nas chuvas não haverá mapas nem nas areias signos místicos.
- serei apenas eu e esta certeza incômoda no peito, como um pássaro
engaiolado
calado
de asas que aguardam céus e seus desdobramentos fáticos.
me espere na próxima estaçào, com ou sem flores ou folhas suicidas.
me espere na saída do dia, na gargalhada das estrelas, na sua cumplicidade
com o rio, com a forma, com a sede de nós.
eu saberei, você descobrirá, nós revelaremos ao mundo.

nas bordas da vida

hoje a dor me visitou. de novo.
não é exatamente uma surpresa, sabemos todos.
é bem comum a tudo que habita estas terras a chegada de tal senhora.
mas veio de chofre - odeio quando me toma assim, desavisada.
ela me percorre, rompe toda a superfície, revelando-me mais sobre mim do que tudo:
medo, revolta, paciência, indolência, humildade, singularidade...enfim.
curiosa, investiga todos os quadrantes e ao sentir seu caminhar ponho-me atenta
os pelos erriçados, a pele umedecida, as pupilas dilatadas.
sei também que não tem pretensões de ficar - ela não pode
tenho meus meios para expurgá-la - e isso só a excita mais por vezes.
quando estou prestes a perder a batalha, mas por um tanto mais revido,
é quando ela cresce, me humilha, submete, só porque pode.
é peculiar esta sua visita. ela é a unica que, quando se vai, me deixa diferente de quem eu era.
sempre isso. talvez porque saiba, conscientemente, que voltará. e isso é uma certeza.
das poucas certezas que esta vida me legou.
até lá, finjo sua ausência. finjo minha impenetrabilidade. finjo que é dos outros.
assim lidamos com o que não podemos impedir - sonhamos.
até que o alarme soe uma outra vez.

colapso

é precioso presente a tua estada comigo. tua clareza de riso. tua fonte de cor.
é precioso, estou ciente, que me tomes as mãos e cantes pra mim a cantilena de sonhos.
as ruas estão mais quietas, desde que chegaste. calei-as, para ouvir-te o coração.
sempre soubeste me filtrar o olhar e tirar de mim o meu melhor. invejo-te a generosidade.
é precioso que me toques os lábios e o chão suma, o tempo pare, o corpo grite, a lua morra.
e tu entre meus seios me cante, novamente, os versos que me fazem querer viver mais.
entre teus dedos meus dedos e minha confusão entre tuas pernas e braços: a morte no gozo.
nada pode ser mais vívido que esta hora, mais delicado e frágil diante dos anjos e dos homens.
e porque é precioso, precisas ir. e porque é precioso, necessário que eu chore.
a compreensão da beleza repousa na transitoriedade das coisas que se partilhou.
minha vontade de amor me manterá viva até o retorno de minha alma. volte, pois.

nada versos nada

já comeu sem sabor? olhou sem ver, ouviu sem escutar, tocou...sem sentir?
você já esperou a festa e quando chegou ela passou sem se entender?
quantas vezes tenho a impressão que estou em um intervalo entre o estar e ausentar-se
e a vida me parece um palco onde assisto aos outros.
pode ser só cansaço - das coisas diárias, dos mesmos rostos, da mesmice falada
na mídia, na rua, em casa, dentro da minha nada clareada cabeça...sei lá.
mas o fato é que parece que algo se desconectou, se rompeu, se interrompeu
(explica bem melhor - se interrompeu!)
estou astronauta flutuando nesta cena de aspectos tão bizarros que até desisti
de entender, de explicar, de participar das tragicomédias. é. é mais ou menos por aí.
leio mas não vai além dos olhos. cheiro mas fica retido nas narinas. provo, sem engolir a saliva.
eu dormito entre os atos. imagino um final que não chega acontecer. e se acontecer, provalvelmente,
não vou vibrar como me sinto cobrada a corresponder. acho que parei. parei em algum lugar...
mas onde?

Quando o desejo canta

que som faria um desejo?
dentro da noite cerrada, a pergunta me embargou a voz.
que som ele emitiria, o desejo?
som de canto de sereia, som de ponto de exclamação,
som de sirene de alerta, som de água que batiza a seca, som de tamborilar de coração...
som de grito reprimido e liberto, som de amor redescoberto, som de suspiro ungido
nas doces promessas do coração surpreendido pelo desenfreado querer...
que som teria este adorado sabor senão o de quero de novo, quero mais intenso, quero.
e as catedrais internas desmoronando em repicar de sinos distantes, estravasando
as torres da alma, os píncaros do espírito...
som de entrega. som de enxurrada. som do bom!
Dentro do dia sem dono sou passarinho disposto ao cantar. Tempo me traz, tempo me leva, as asas cansarão de espaços e me repousarão num galho de fruta boa e a vida me parecerá muito leve e muito fácil, como se imagina, doidamente, que é a sina de passarinho, que desvia da pedra e se safa da mão pesada de menino. Chuva me benze, terra me acolhe, encolhido, quando numa nota suspiro abraçarei de vez este "ceuzão" de meu Deus... Ai volto anjo, que os homens precisam muito de colo de passarinho...
E este tempo das coisas que desliza, suave e ininterrupto. Esta tarde morna entre céu e capim limão, onde o vento se despede sem olhar para trás. Este olhar parado entre o ontem e o agora, sem se decidir se segue ou se demora mais na lembrança doce. Este calor do seu peito, este bater perfeito e ritmado do seu coração. Como a vida é breve, meu Deus... (Abril, 2012)
É assim que me afeta: sinto-me como se caminhasse sobre vidro. No paladar a angústia da suposta queda, a dor da lâmina vítrea que talvez experimente a carne, o abalo do coração em flashes de recordações não vividas (sonhadas, amadas, mas não vividas). É assim que me afeta: piso sem intenção de acordar os deuses - ou os demônios... (Abril, 2012)
Eu verei você quando meus olhos estiverem anuviados, pois seu rosto mora em minhas mãos. Eu verei você quando as maçãs flácidas acobertarem sua pele, pois ali plantei meus melhores beijos. Eu verei você quando cabelos brancos lhe ornarem a cabeça, porque vezes sem conta acariciei estes fios. Eu verei você quando caminhar como quem já não pisa sobre as pedras deste mundo, pois suas pernas me sustentaram uma vida inteira quando prosseguir no caminho foi difícil para mim. Eu verei você além das mazelas do tempo, além das marcas da história, além de meus olhos e de seu rosto - eu verei você com este Amor intemporal que nos perpassa. (Abril, 2012)
Feito o estrago, estabeleça o preço:
uma suposta "deliciosa" solidão eleita companheira, que não convence a mais ninguém - nem a você;
um travesseiro agridoce de constância de lágrimas, enjoado;
uma roupa de vítima rota, esgarçada, demodè,
e que sinceramente nunca lhe coube;
um frio na barriga temperado à raiva daquela foto
que você amassa, cospe...e depois torna a guardar;
um medo que não lhe cultivei, um sofrimento que não lhe semeie, um abandono das coisas que se nutriam por si só;
uma culpa que lhe arqueia os ombros, onde se estabeleceu o resto de uma vida toda para um indigesto "se".
Feito o estrago, estabeleça o preço. E aí pague. Mas ungido de alguma dignidade, faça-me o favor. (Abril, 2012)
Não se permita olhar para trás - pode doer. Fiquemos assim, no espaço de cada um agora anunciado. Certeza? Não, não tenho. Ora, são tão esquivas, as certezas. Escorregadias como rãs. Mas a escolha se firmou por si mesma, se assenhorando dos fatos, dos atos, das dores e rumores. Devo confiar em algo que cultivo há tanto... Então eu olho aqui pra dentro e passo a perceber outros espaços, que temo, confesso, mas que reconheço como sendo meus. Como quando se cai do ninho. Como quando se vai sozinho pra escola. Como quando se toma um ônibus, pela primeira vez. Assim, olhe pra trás não, que eu já me esvaio em angústias muito pessoais e acostumar-se assim, a si mesmo, requer um grande esforço. Dei o primeiro passo. Orgulhe-se de mim. (Abril, 2012)
São nas minhas cavernas que sussurram, como se fossem trovejar poemas, meus sufocados apelos de entendimento pelas coisas que por mim escoam, na fúria dos dias na aldeia dos homens. Nas minhas cavernas coloquei frases minhas e de tantos outros, que meus ouvidos rebuscam e os conselhos dos anciãos. Minhas cavernas tem paredes lixadas à unha, tem pinturas feitas de borra de lágrima, tem solo de cheiro doce e suave ao toque do visitante. Minhas cavernas abrigam e salvam, a mim mesma, das grandes marés e me devolvem depois, generosas, o ar e sua umidade, o dia e suas novas histórias. Conforto-me porque elas estão lá, e apesar de não terem portas, só os a quem convido se atrevem. Minhas cavernas tem túneis para o céu, mas inventam purgatórios.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

no ato de viver

estou sentada aqui com meus irrequietos sapatos vermelhos,
esperando. pretendo esperar; olharei para a gente que passa,
fingirei algum conforto, simularei estar lendo algo em lugar nenhum,
suspirarei fundo, driblando mal minha inquietação.
mexerei os dedos, como quem tamborila um samba, em plena composição,
reexaminarei o batom, pela centésima vez pelo menos, para um desnecessário retoque.
um garotinho passa e sua expressão se transfigura ao ver meus sapatos - vermelhos.
e espero. o chiclete já perdeu o sabor, uma mecha de cabelo brinca no vento,
minha perna cruza e descruza o tempo dos ponteiros apáticos.
é; o tempo de quem ama possui sua exótica e estranha batida, diretamente aliada
ao atropelo aflitivo do descompassado coração.
espero: nada me retiraria a dor e o prazer desta hora.

recado

eu suspeito que você veio até aqui para olhar pra dentro de mim e se responder. lamento.
nada de oráculo me habita e de você sei menos do que de mim.
é cômodo encontrar acolhida para o turbilhão de pensamentos e ter alguém,
que, ao menos momentaneamente, lhe diz o que fazer; mas é temporário e ilusório.
eu lhe asseguro que de dentro deste escuro que agora coabita com seu sofrimento
faz-se-á alguma luz, que dilatará grotescamente suas pupilas para depois embalá-las.
ninguém vaga muito tempo à margem da estrada ( mesmo quando o quer):
se as rédeas da sua mão escapuliram, alguém as tomará e conduzirá o seu destino.
a pergunta é: por quanto tempo pode-se viver com isso - suportar ser levado,
trazido, usado, servido, proscrito, gasto...?
não, nem adianta mergulhar em meus abismos - ao contrário do que acredita,
estou buscando, todo dia, a minha própria bússola.
uma dica: retorne ao seu coração, amorosa e humildemente.
é um aprendizado de muitas, muitas vidas.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

condenação

é de doer tanto que os joelhos da alma se dobram
e tem-se nos olhos resíduos de tempestades no mar.
passa-se a ser mera sombra de si mesmo - um desejo sem dono, um sonho estéril,
um abandono na casa de seus ais e uma habitação do desterro.
faz torcerem-se as entranhas e condoer-se da própria voz
de dor tamanha que abala até a santa calma que habita os mais serenos.
a lâmina paira sobre a cabeça ao longo de muitos dias como uma flâmula
onde se gravou a danação.
o tempo passa a ser um carcereiro sem misericórdia
e a luz do dia de uma total falta de nexo diante da negritude do coração.
a canção machuca os ouvidos, a saliva queima e todo seu eu está em transe
- um apocalíptico transe entre a pena de si mesmo
e mesmos retóricos questionamentos, implacáveis:
por que não ele? ou eu? ou nós? que foi que eu disse? ou não disse? fiz...
cansa-se de si mesmo, mas não se pode partir pois está dentro da sua cabeça,
comendo nas suas células, respirando no seu pulmão - é até uma segunda pele
mas que não descama nem se rompe quando se quer; só com o exaurir-se.
quem precisa temer o inferno quando já se conheceu um grande amor?
se presente, cresce o medo da perda - se ausente, perde-se a noção de vida.
estranha ferida da qual, purulenta, se alimenta a esperança de uma nova paixão.
a redenção dos amantes está no vício que o amor provoca.