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quarta-feira, 20 de junho de 2012



A lavanda infesta o ar, como um enxame de emoções desprendidas, de repente. Não soluço, não conto tábuas, não mais. Antes era um tempo só imaginado, esperado com gosto de promessa de filho. Mas ele ficou velho e,  hoje, é este rascunho de festa que nunca acendeu as luzes. É o preço que se cobra (mas não se recebe): entregar-se. Desde então cubro o espelho com uma toalha velha e ressecada. Não preciso que me recordem esta alegoria na cara. No mais, vou quase sempre dormir. Sem sonhos. Eu morri um dia, e ninguém nunca me dissera antes que se pode morrer vezes sem conta. O problema, é que também ninguém responde, por que cargas d`água você cruelmente sobrevive e retorna. E é quando se passa a ter pousado, na cabeceira da sua cama, o medo. Vê só?! E ainda lhe diziam, ainda criança, que não existiam monstros a temer dentro do seu armário...

terça-feira, 5 de junho de 2012

Porto inseguro

Amanhã eu lhe trarei meu coração. Prometo. É arisco, sorrateiro se esgueira porque pressente meu cheiro, meu hálito, meus ais. Mas, com um tanto de paciência que me cabe, eu o arrebatarei das luas e dos varais, dos becos e das vitrines, dos dias e seus muitos sóis à pino...e o trarei! Para ensinar-lhe seu lugar, o submeterei aos caprichos de estar prostrado aos seus pés, você verá. Êh, que coração nenhum me engabela assim, se torna arredio e alado e me passa dias fora, sem desejo meu no arreio. Que eu não admito esta fuga diante das dores, não o alimentei pra isso, pra medo, pra escuro. Não. Eu o trarei, e ao deparar-se dentro destes seus olhos mirado, olhos de gula, buliçosos, ele se quedará silente e deliciado, que bem eu sei. Que meu coração andou disparatado neste mundo de meu Deus, mas agora, agora ele conhecerá ser presa e ser preso, dono de nada além do que você lhe dará, atento a cada segundo diante de si mesmo, tendo asas, mas se recusando à voar. Que este coração já foi caiado em lágrima e saudade e agora só precisa de pouso, de retornos, de um cais.

Filhas do coração

Ameaçam-me as memórias. Antes distantes, agora fazem-se senhoras de meus pensamentos todos. Falam-me de uma amiga que abraçaria. Falam-me de um amor da que beijaria, de novo, pra ter a sensação de estar mais viva. De uma casa de avó e cheiros de cozinha mágica. De um quintal com horta e pé de amora. De um armário no canto do quarto que me assombrava. Falam-me sem dar descanso. Falam-me sem piedade. Invadem meus refúgios, sem barulho, mas com forte aroma de nostalgia. Cantam minhas cantilenas de roda, meus enredos inventados, meus segredos de alcova. As memórias mais doces são sorvidas sem desgaste, mas nunca andam sós, como bem se sabe. A elas segue a saudade, incontinente e indiferente à minha provável dor. Que saudade é dor que fura alma, com espinhos disfarçados de rosa. Minhas memórias insistem em quem eu era, no que eu fiz, em quem me foi. Ouço música; elas sabem a letra. Escrevo; elas pontuam. Como; elas evocam sabores de longe. E num momento, não vejo senão o que me mostram. São criaturas que brotam da alma, não da cabeça. Por isso são tão filhas.

Derradeiro

E rumo às estrelas então ele corria, e corria, e seu nome se perdia na aflitiva indagação que me estrangulava a voz na garganta, como se um pássaro lá se debatesse. E ele olhava apenas para aquele céu, céu que já era dele desde sempre, desde tanto, desde dentro de cada noite em que ele amara aquele céu. E corria, e seus pés já não sabiam de chão, de cortes, de dores desta terra. Era apenas a busca insana e santa por aqueles céus de menino sem teto, sem identidade adquirida, sem saída diante das nossas parcas e fartas misérias. E ele corria, e aquele mesmo céu, entre debochado e curioso, o ansiava, como se fora uma noiva desperta pela paixão. Seus olhos eram incêndios dentro do escuro, seu peito arfava alto e incomodava os passarinhos sonolentos, acobertados pelas enfadonhas horas. E ele corria, carregando dedos umedecidos em contentamento e tensão, beirando a loucura das velhas solitárias, do silêncio que habita os mortos e horrores dos penhascos da alma. As estrelas? As estrelas soltavam gritinhos de alegria. E em momento algum, eu lhes prometo, em momento algum, ele voltou os olhos para ver se deixara algo importante para trás.

Primaveras sem retorno

São como as nossas flores, recorda-te? Pelo caminho até a estrada feia, as flores. E íamos em uníssono com a valsa do vento frio. Ele me fazia doer os pés - tu, ao meu coração, desarrumado. E as flores nunca faltaram sua graça em cada riso, em cada decoro, em cada foto. Fazias questão de me dizer que havia delas em mim e te agradava isso, esta delicadeza, esta leveza flor. Seriam as minhas histórias em apartados galhos secos e frágeis. Seriam as minhas memórias, nascidas da semente boa da minha ilusão. Seriam frutos, não caíssem antes das ramadas, ainda tão jovens, ainda tão promessas. Eram nossas flores, eu pensava. Mas só que eram apenas minhas, fábulas tramadas pela vontade de ser feliz, arrancadas precoce de meu coração.