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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

fale-me mais de você. fale-me das suas correrias pelas escolhas sem saída, das suas idas e vindas pelos sonhos que tem acordada. fale-me de seus monstros atrás das portas, quando ninguém a houve gritar, de seus altares secretos, da água que escorre noite e dia da sua boa, silenciosa e dormente. fale-me das gentes que amou, que criou, que odiou, que abandonou nas cartelas sem endereço, nas cartas rasgadas e nas rasuras de sua cara. fale-me dele, principalmente dele: ele a fazia gritar, você delirava com ele, sabia da espera, da perda, da ruptura dentro da promessa? fale-me dele! a cor dos olhos quando saia do leito, a textura da pele depois do banho, o cheiro dos cabelos, o nome pelo qual só ela a chamava...esta dor é deliciosa e substanciosa - fale-me dele, o único que nunca irá embora, que não morrerá jamais. (Bete Amorim)
meu grande amor,preciso confessar, que eu já parei, faz bem um tempo, de rezar pra você voltar. parei de falar sozinha pelos cantos e minhas unhas voltaram a crescer. parei de reler tantas folhas, tantas falhas, tantas mensagens cifradas, tantos anos. parei de pensar em você como algo que foi embora: você jamais se irá, jamais. e aprendi a respirar com isso sobre o peito. parei de provocar encontros com pessoas que talvez lhe tenham visto, falado, amado - como eu não fui capaz de faze-lo, com aquela coisa que entrega a alma, sabe? a alma é minha, perdoe. mas fiquei com a dor da dúvida de se eu fiz a escolha certa. perdoe. parei de me culpar, porque já me castiguei demais, até pra mim. parei de amar um passado bem distante de tudo agora, um alguém que você já não é, por um alguém que certamente eu não seria. eu não cabia nas suas medidas. você chegou com uma vida pronta e eu começava a achar que a minha ia decolar. parei de mergulhar em tanta água do meu olho. parei de me orgulhar de ter sobrevivido a nós dois, como se eu lhe devesse isso. apenas sou, é só o que quero, é só o que posso. sou. como eu era antes de você. e como serei depois de mim mesma. (Bete Amorim)
é um copo vazio. na minha frente, agora. é o que há. um vinho tragado no vazio de um copo que antes estava lá, na espera. e eu divago, soluço, engasgo com a própria saliva. não há alívio possível, não há consolação. eu mesma ergui esta ode ao copo que diante de mim comporta o mundo. um copo sem definição, incolor em essência, por triste coincidência, nesta hora, vazio. em mim, todas as perguntas possíveis, em mim todas as inquestionáveis resoluções, cristalizadas e foscas. eu cheia. diante deste copo. (Bete Amorim)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Não sou tão diferente de você. Eu me escondo pra chorar minhas mazelas, eu cheiro as roupas do ser amado, eu rabisco coisas no espelho embaçado do carro ou do banheiro, eu repito aquela música como um mantra. Eu queimo a língua pela ansiedade, eu sinto sede de água nenhuma, eu mastigo as horas que me fazem esperar. Não sou nada diferente de você...eu tenho pesadelos que trazem suor e medos antigos, eu revejo fotos com o interesse de sempre, eu nos vejo depois de passado tempo (nos lugares mais inusitados). Tenho pecados inconfessáveis, segredos partilhados com gente demais, vergonhas públicas, gozos primitivos. Tenho manias que me fazem rir sozinha, coleciono coisas sem saber pra quê...ou pra quem. Também eu persigo sonhos, mesmo que constituídos de matéria tão sutil. Também eu cobiço, confabulando com meus demônios internos. Também eu suplico misericórdia aos anjos pelas facetas de minha humana pequenez. As vezes, quase desisto. As vezes, quase permito. As vezes, quase sou mais. Não somos tão diferentes, mas tanto nem tão iguais. Somos o que nos tornamos, na tecitura dos dias entre nossas escolhas. Por isso, a compaixão. Por isso, o desprezo. Por isso, o insondável mundo do Amor, tantas vezes traduzido em desolação e desterro, como recompensa por nem sempre termos escolhido sermos nós. (Bete Amorim)

sábado, 11 de agosto de 2012

Perdoa se eu choro. Não planejei assim. As coisas que me devoram o fazem no silêncio de minha sala, entre meus livros, embaixo da escada. Perdoa se eu me permito tão frágil na sua presença, isso pode ser embaraçoso, desconcertante, até incômodo, é verdade..perdoa. Não há aqui a intenção de despertar comoções, só não posso contê-las, as águas, que urgem limpar meus olhos, que urgem lavar memórias, que urgem encontrar alguma nova visão no embaraçado cenário que se estende diante de mim. Eu acho que choro por outras coisas, pelas ruas secas, pelas notas sem canção, pelos bichos, pelo roçar das pernas, pelas perdas de manhãs de sol. É isso. São outras coisas, outras tantas, tantos outros. Perdoa se eu instrumentei cenas, e se eu maquiei caras, e se eu rasguei a melhor parte do seu roteiro. Mas as falas eu decorei, todas, como você arquitetou tão bem. Só os poemas sangram, dia e noite, desta hemorrágica sensação de metade. E eu ainda nem comecei os dias que me veem de frente. E eu nem observei se você já foi. E já choro! Que coisa! Perdoa. (Bete Amorim)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012



Foi no meio do dia, numa hora sem maiores significados, signos, marcações ou sentidos. Não tive sonho premonitório, não vi sinais no céu, não tinha aro na lua, não tinha coisa alguma diferenciada na seção do horóscopo no jornal. Não li nada no seu rosto na noite de ontem, não li nada no cheiro da sua pele na cama, não li nada em seus achados e perdidos sobre a mesa. Nada. Nem. Talvez o amor vá embora como um pássaro decola de um galho que, num balanço repentino, o assustou. Talvez o amor se canse de subidas, de descidas, das curvas bruscas, das freadas. Talvez o amor se enterneça por corações vazios e deixe aqueles já se acham preenchidos. Como eu vou saber? Como você me saberia? Talvez o amor seja criança demais pra tanto peso, tanto alarido, tanta enfermidade e se vá, assim, indiferente aos signos, aos sinais, aos apelos. Não há nisso nenhum grande mal, nenhuma pérfida maldade, porque tais deformidades não se afinam com o amor. Há apenas partida e fica então saudade, dentro da gaiola espaçosa de um coração que acordou, de repente, e deu falta. E então pode-se ouvir a alma soluçar. Mas que se aponte - o amor não olha pra trás. Se olhar, não é amor: é pena.