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terça-feira, 5 de março de 2013

Eu me confesso devota de nós dois. Postos num altar do meu coração, flexiono os joelhos e fico observando as muitas montanhas que removemos; os mares que atravessamos engolindo sapos, cobras, lagartos, jacarés; os dias em que houve abundância de medo e sobra de lágrimas; os braços unidos como correntes de aço e seu olho pregado no meu, pra não me deixar soçobrar; as nuvens negras que trocaram nossos dias por noites densas, mas que rasgamos a unha e recuperamos nosso calor de direito. Eu me lembro das muitas vezes em que você não estava lá. Lembro também das vezes em que você caminhou sozinho e descrente. Depois, tem a gente de volta à gente, e tudo de novo, renovado e vingado do chão, com um tanto de saliva, um tanto de suor, um tanto de alegria ingênua que vaza pelos poros durante o amor que exaure, mas também acalma. É. Eu sou devota de nós dois, porque não acreditamos em almas gêmeas, mas tantas e tantas vezes nos confundimos, como quando nos fundimos num filho, onde posso ver eu e posso ver você. Nada de perfeito. Nada de instável. Apenas humanamente realizável. Até onde der. (Bete Amorim)
Hoje, ah! hoje é dia de gira, hoje se reza o terço, canta-se a ladainha, hoje se unge a testa, hoje afasta-se às pressas o olho gordo, a vida magra, a praga encomendada, o trabalho feito, a coisa que tá ruim, a dor nas cadeiras, na cabeça, na encruza, debaixo do poste, de dentro da cuia, da circunferência da lua, na cadência das estrelas. Hoje é dia de incenso, bom senso, cancioneiro, aguadeiro bento em escadas e balcões, dia de soltar rojões, tomar benção ao santo, debruçar sobre a medalhinha, ler nas entrelinhas das mãos, dos pés, das rugas, das lutas e passadas pelos apertos que vivencia todo cristão, espírita, espiritualista, umbandista, judeu, budista... Axé, meus irmãos! Shalom! Namastê! (Bete Amorim)
meu grande amor,preciso confessar, que eu já parei, faz bem um tempo, de rezar pra você voltar. parei de falar sozinha pelos cantos e minhas unhas voltaram a crescer. parei de reler tantas folhas, tantas falhas, tantas mensagens cifradas, tantos anos. parei de pensar em você como algo que foi embora: você jamais se irá, jamais. e aprendi a respirar com isso sobre o peito. parei de provocar encontros com pessoas que talvez lhe tenham visto, falado, amado - como eu não fui capaz de faze-lo, com aquela coisa que entrega a alma, sabe? a alma é minha, perdoe. mas fiquei com a dor da dúvida de se eu fiz a escolha certa. perdoe. parei de me culpar, porque já me castiguei demais, até pra mim. parei de amar um passado bem distante de tudo agora, um alguém que você já não é, por um alguém que certamente eu não seria. eu não cabia nas suas medidas. você chegou com uma vida pronta e eu começava a achar que a minha ia decolar. parei de mergulhar em tanta água do meu olho. parei de me orgulhar de ter sobrevivido a nós dois, como se eu lhe devesse isso. apenas sou, é só o que quero, é só o que posso. sou. como eu era antes de você. e como serei depois de mim mesma. (Bete Amorim)
Nenhum lugar é vasto bastante para minha saudade, minha verdade, meu silêncio torpe. Lugar nenhum me cabe fora de mim. A amplitude de minha alma atravessa esferas. (Bete Amorim)
Me perdoe, se puder, ó meu amor, pelas noites que passei chorando, enclausurada em minha própria dor. Pelas vezes que escolhi a solidão em lugar do aconchego do seu corpo, pelas vezes que vaguei, absorta em mim, enquanto você olhava o céu. Eu peço perdão, meu amo,r por este meu amar tão frágil, que se curva e geme diante da tormenta, enquanto deveria abrir as asas e agasalha-lo, confortando e acalmando o seu coração. Eu me pergunto o que mantém você ainda ao meu lado, depois de tantos caminhos de atalho, que apenas prolongaram a noite da senhora indecisão. Me perdoe, meu amor, por eu ser só humana, mas querer amar como o Divino. São tentativas tantas movidas pelo desejo de acertar, um acerto limitado à minha dimensão. Não posso prometer amanhãs, alvoradas, festas de luz. Só posso mesmo lhe pedir que me perdoe, e dizer que o amo, uma vez mais, dentro de minha angustiante caminhada para crescer e poder, um dia, não mais precisar pedir o seu perdão. Espero que dê tempo. (Bete Amorim)
Os breves momentos que passei contigo, me alimentaram por dias. Horas preenchidas de lembranças, enrodilhadas em muitas e loucas fantasias. Diálogos que só existiram na minha mente, cenas de filme retrô,causam ainda mãos frias. Um cheiro que não sai das narinas, um apelo do corpo de ficar à esmo. Um desejo de mandar no tempo, de detê-lo em seu desarvorado galopar. O estágio do enamoramento asfixia e embevece. Já passamos disso. Não é?! Sinceramente, não saberia dize-lo. Só sei que sobrevivo dentro dos contratempos, dos aborrecimentos, quando revivo aqueles momentos. Um silêncio bom. Uma palavra transfigurada. Um olhar morno. E posso viver com tudo o mais, mais um pouco. (Bete Amorim)
Passei, passarás, Quintana passarinho, tudo neste mundo: um sopro no asfalto, um piscar de olho, uma folha que cai torta. Um dia ao outro se suporta. Uma hora de riso, outra hora é morta. O tédio veste a maioria das almas, coitadas, veladas por si mesmas, inquietas demais pra se dar conta de onde vão. Uma vez astro, outra hora em decadente urgência, as vidas se retraem e se expandem o tempo inteiro, de janeiro à janeiro, numa interminável fila do cordão da própria Vida. Poucos vibram luz, poucos exalam a imperiosa essência, poucos rejeitam migalhas e descobrem que acima existe um céu, um universo em completo encanto, um acalanto de miríades de estrelas. E a divindade dorme dentro deles, como um favo de mel enterrado num tronco escuro. (Bete Amorim)
enfim, sós. a pupila bem dilatada dentro da noite estrangeira. a gagueira que impede o grito mais audaz. a mão que oscila como bambu ao vento. o pensamento, que de tão frio, passou a ser azul. e enfim sós, abandonados a nós mesmos, tendo que encarar, em posições adversas, o espelho. o espelho que não perdoa a dobra do tempo sobre os lábios baixos, sobre as pálpebras tímidas, sobre os ombros arqueados.sobre os amados deixados lá trás. enfim sós para repensarmos um tempo que se esgotou, numa vida que passou num lampejo de lucidez... ou de insanidade. mais insanidade, com misto forte de saudade e perguntas coroadas de mais perguntas. enfim sós, dentro da noite, dentro da noite que não acorda em nós, uma noite longa e espessa, que emudece a voz do coração. parece que não somos tão auto suficientes assim, afinal. e que a sós, diante de nós mesmos, a coragem se torna elemento raro e caro. em fim. (Bete Amorim)
passei o dia contando folhas e fios. as teias me embaraçaram as ideias, e ouço borboletas desde então. passei o dia sem mim, porque vivo fugindo das respostas. entre as ramadas sujas de pó das ruas largas, mas vazias de sentimentos válidos. entre rostos cinzas, coitados. entre o suspiro longo e gasto dos canos de descarga e as flores beira chão que ninguém quer. passei o dia entre o suspeito e o concreto, entre o estar aqui e o ter partido há muito. entre as horas que pressinto preencher a goles grossos e viscosos. tenho passado tempo demais e vivido tempo de menos. isso sim, me alardeia. me assusta. ver que as pernas estão mais curtas e os dias mais cheios de vento. e os pensamentos vem perdendo, paulatinamente, todo o seu natural encanto. não vou mais passar - me recuso. vou estar. é mais sofrido, mais confuso, mas tem em si ainda algum gosto a ser sentido. (Bete Amorim)