Total de visualizações de página

segunda-feira, 24 de março de 2014

Romaria - memórias de Aparecida do Norte

Pequena demais pra alcançar sozinha o assento, mãos zelosas me sustentavam até que me acomodasse na poltrona. Tudo grande demais quando se é pequenina. O mundo entre assustar e encantar, me seguia atento. Eu sempre ficava na janela, claro, pra não causar perturbação. Distraía-me fácil, mais fácil ainda me deleitava aquele passeio incomum. Se era promessa não tenho certeza, mas uma vez por ano, com as tias, eu ia encontrar-me por lá, entre os milhares de peregrinos que trafegavam, sempre correndo, sempre falando demais, cansados demais, estranhos demais pra não conseguir deixar de me assustar. O medo de me perder das tias e a mão apertada de ficar vermelha são vivas como o sol de hoje. Sentávamos, ao chegar, ainda sonolentas, num barzinho local, nas cadeiras gastas de gentes de toda parte, de toda hora, de todos os dias. Café com leite quente, por favor. E a tia tirava da bolsa grande um pote onde se escondiam bolinhos, caprichosamente arrumados, que comeríamos com pão. Depois, a basílica imensa, imensa meu Pai, e eu me apavorava com um Deus tão grande que bateria a cabeça no teto daquela cúpula que, eu podia jurar, tocava o azul sem fim daquele céu. Queria correr - não podia. Andar entre os devotos - não podia. Quietinha que o padre tá falando, ouve só...não, não entendia aquilo, mas entendia de ficar girando, girando, olhando pra cima, naquela imensidão que me tornava, como se possível fosse, menor do que já era e bulia com os pombos, que, incansáveis, cruzavam por cima das pessoas, o tempo todo, com os arrulhos ecoando pelas paredes da basílica, ainda em construção. E tinham aquelas salas, aquelas alas todas, que acho que nunca acabava, uma de milagres, com tantas fotos penduradas e velas acesas, que apagavam o brilho das estrelas do céu. E cabeças de cera, e pedaços de cabelos, e muletas... nossa, as muletas... e o coração infantil disparava no peito, emocionado e aflito, desejando muito sair dali e ir encontrar o sol. Silêncio pesado, sagrado, rigoroso e entrecortado pelo murmúrio de infinitas preces que varavam os anos. Hoje, vendo chegar aqui em casa a minha tia, 90 anos, trazendo os tais dos bolinhos para meu filho, meu peito ficou menor do que eu era naquelas viagens de madrugada, em ônibus coletivos de romeiros, entre as tias aconchegada, amparada por uma fé que não professo mais. Hoje, como Maria de Aparecida do Norte, sou mãe e aconchego sob meus olhos, uma família. Mas a menina em mim ainda lhe abre os bracinhos e pede proteção e colo, pede amparo e tem medo de se perder. (Bete Amorim) — com Eliane Amorim Daniel, Deise Borsato Fernandes, Tarsila Rangel e outras 46 pessoas.

Chuva boa

Chove hidratando a ressequida cutes da terra amorosa, chove dando de beber às matas virgens e às devassadas, chove para os cães de pendentes línguas vermelhas, chove para o assombro e deleite do sabiá laranjeira. Chove para que o rio engorde, para que o milho engrosse, para que se assossegue a poeira. Chove para lavar a pele salgada, chove para reavivar as cores da velha calçada, chove para dar pingadeira nos galhos do cipreste torto, chove para turvar, de novo, a paisagem distante. Chove para que se enlameiem as crianças e barquinhos de papel retomem a rota. Chove. E abençoada seja a água que nos lava a Alma diante da morte empedernida que outrora debochava do céu. (Bete Amorim)

Tempo, tempo, tempo, tempo...

Que desperdício de tempo, essa distância entre nós. Um valioso momento e se desfaz, como açúcar nessa água. Um doce querer fica a boiar, entre a promessa e tempo que se esvai, como uma vela cansada. Que desperdício de tempo, essa música cantada só para as paredes, entre os dentes, sobre as janelas que contemplam uma não chegada. E eu e todas essas cosias belas e mornas que me doem o estômago e tremulam minhas mãos... (Bete Amorim)

Cartas para o meu eu II

É preciso que usemos algumas linhas para dizer dos enganos bem rotineiros da alma. Mariposas enebriadas pela luz, tomamos por precioso algo indevido, no momento em que estamos à deriva. Como esse pobres insetos volitantes, permitimos que a falsa claridade seja tomada pelo grandioso sol, que nos aquece e alimenta. Mas é apenas uma fina lâmpada, num fosforecer temporário. E se muito ali nos entretemos, nos detendo apreciando uma transitória beleza, o dia lá fora desponta e desprevenidos nos alcança, e nos vemos acuados, confusos e sem rumo, roubados em nossa estranheza por uma luz que mais não há. Assim tantos caminhos, mestres, doutrinas, "amigos", vernizes, nessa nossa surpreendentemente e tão veloz existência, nos roubam preciosos momentos, dias, anos. A que se velar, atentamente, por nossos pensamentos, para que não se envaideçam e se entreguem às luzes aparentes, transitórias e traiçoeiras, pelas tantas avenidas do roteiro da vida, antes que percebamos quanto tempo vão foi dedicado ao redor do que era, tão somente, uma simples lâmpada, num teto qualquer. (Bete Amorim
Raízes amargas
Me odeia nada. Me ama, tanto, que me carrega nos olhos, ficando empregado de um quê que ninguém decifra. Me ama tanto, que não dorme sem sonhar comigo, jeito desesperado de me manter por perto. Me ama tanto, que as pernas lhe faltam quando cruza com alguém na rua e pensa, por breve momento, que possa ser eu. E aí, aí a dor da decepção, tentando, em vão, calar o coração que antes cantava. Me odeia que nada! Me ama, de maneira tão inconfessa, tão culpada, que morde os lábios de tirar sangue, com medo, quando acompanhado de outro alguém, pronunciar na hora do fogo do amor, o meu nome... meu nome. Me odeia nada. Me sufoca como uma coisa banida, me amaldiçoa como uma coisa bandida, me encobre como uma coisa que mancha, uma cicatriz feia, uma lembrança má. E depois, cheio de culpa e remorso, vai correndo me buscar no fundo da mente, no mais profundo da sua dor, do ápice do seu desejo. Me odeia? Nada. Me carrega como quem esconde um tesouro, sepultado nas areias do tempo da sua Alma. E luta pra não esquecer minha voz, meu cheiro, meu toque, meu olhar. Só odeia o tanto de me amar. (Bete Amorim)
Amor da minha Vida...
Beijei você inúmeras vezes, sem não nos termos tocado; levei você à todos os lugares que conheci, todas as paisagens que visitei, todos os altares em que dobrei meus joelhos. Dormi com outro mordendo os lábios para que seu nome não me fugisse, sussurrei-o dentro da noite mais escura quando me vi muito só, e afagava, a mim mesma, vibrando em sua presença. Você trocou de rosto comigo tantas vezes no espelho que me perdi, me despiu tantas vezes sem o saber que me machucou a pele, me contou coisas que nem você sequer sabe. E criou comigo os filhos que não tivemos, dançou comigo nas festas em que não fomos, riu comigo das bobagens corriqueiras de quem sempre está lá. Você nem imagina quantas vezes nos casamos e você chorou ao dizer "sim". Bem, chorei também. Você mora comigo ocupando um espaço que lhe ofereço, todos os dias. E eu, somente eu, amei por nós dois e vivi uma vida em que nada nos separaria. Você meu sonho perfeito - por isso, e só por isso, não passou de um sonho. (Bete Amorim)